O Deserto

Certa tarde ele se mandou pro deserto. Levava consigo uma tela e um embornal com tintas e pincéis. E lá no auge do silêncio oculto, no calor que declina em frio, no extremo do mundo ele se propôs a pintar o que só se vê como variante da realidade sólida, o intenso, aquilo que existe dentro de nós nas noites enquanto dormimos e que logo de manhã sufocamos como se fosse nada, denominaram sonho, e por sofisma, surrealismo.

E fez duas formas na tela virgem, dois homem, um oferecia pão ao outro que negava, embora fraco e debilitado negava, o primeiro insistia, o segundo negava veementemente. No deserto tudo se torna incerto, as vezes paradoxal, o movimento das dunas por exemplo, belo e mortal movimento, te tira a noção de espaço e tempo. Pintou ao fundo dos homens todas a mulheres da sua vida, dunas de movimentos belos e mortais, coloridas, deformadas pelo calor, rijas pelo frio, incertas. Na areia sobre os pés dos homens e das mulheres, descalços, chamas, labaredas, em laranja, vermelho intenso e azul sem nenhum sentido. Ali tudo parecia ter vida, o homem continuava negando o pão, as mulheres dançando ao estalar das chamas, o chicote estalava nas costas do homem que negava, lagrimas e suor no rosto do pintor, a areia cegava-lhe, fatiava-lhe a córnea. Sangue e lagrimas misturavam –se ao suor e as tintas e a areia chicoteava o homem sem pão, e o outro ria erguendo e esfarelando o sagrado alimento, as mulheres seguravam seus véus e dançavam com os pés em brasa.

A cidade amanheceu tranqüila. As paredes das casas descascadas, surradas, vidros quebrados, nos quintais o deserto se fazia presente, entre os tecidos das lojas areia, cortante, monótona, incolor. Na porta de Ariadne um quadro rasgado e a ponta de uma meada que tomava o rumo do infinito.