UM COMPONENTE CURRICULAR NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha um componente curricular; tinha um componente curricular no meio do caminho.

Minha vida estaria mais do que tranquila. Ao invés de planejando aulas, eu bem poderia está numa das belas praias do NE ou, quem sabe, passeando pelas ruas estreitas do Centro Antigo de Caxias, a cidade de Gonçalves Dias.

O problema é que no meio do [meu] caminho apareceu uma pedra, digo: uma disciplina. Mesmo sem a licença do poeta – que já não está entre nós –, eu diria que no meio do [meu] caminho tinha um componente curricular chamado Ensino Religioso (ER), tinha um componente curricular chamado Ensino Religioso no meio do [meu] caminho.

O fato de ter sugerido aos pais que abdicassem das aulas de ER para ministrar mais leitura e escrita para discentes multirrepetentes do 5º ano – alguns sem saber ler aos 13 anos – escandalizou ao diretor da escola, ao pedagogo e até a promotora de justiça mais do que o fato da escola encerrar o ano letivo com uma dívida de 50 dias não trabalhados, mesmo constando no calendário.

Depois de várias idas e vindas ao Ministério Público Estadual, a promotora recomendou que cumpríssemos (em janeiro/2016), pelo menos metade dos dias letivos devidos.

Aproveitando o período de planejamento do próximo ano letivo, deixo a nossa comunidade escolar algumas inquietações.

A quem, de fato, interessa o ER na rede pública? Se esse componente curricular é tão relevante por que a obrigatoriedade não se estende a rede privada? Por que esta não segue a pública nesse particular? Quem é o professor de ER e quem é o responsável pela sua formação? De quem é a competência pra definir o conteúdo de ER? Como definir um conteúdo de ER que não seja confessional ou proselitista? E como garantir, em nosso estado – onde terminar o ano letivo depois do civil se tornou cultura –, 60 dias de férias para professores e 220 dias letivos, no mínimo? Sim, 220, já que os dez da recuperação final mais os dez de ER não entram na contagem dos 200!

Segundo o Conselho Estadual de Educação (CEE), a habilitação e capacitação do professor de ER são de competência da SEED (Secretaria de Estado da Educação). Neste caso, podemos afirmar que a maioria absoluta dos professores do Amapá, senão todos, que, hoje, ministram tal componente estão em desvio de função, uma vez que a SEED jamais cumpriu tal determinação.

E mais: se o Estado é laico, além de não ter competência para definir ou sugerir conteúdo, tampouco pode formar professores de ER. A título de informação, não existe parâmetro curricular nacional de ER, como sugere o CEE. Isso acontece exatamente porque, tanto o MEC quanto o CNE reconhecem sua não-competência para organizá-lo.

O mais desafiador de tudo isso, porém, é definir o conteúdo. Ora, se a Constituição Federal (CF) veda a confissão de credo, o proselitismo e a intervenção do Estado, mas o CEE determina que o conteúdo seja definido pela SEED, a quem devemos obedecer: ao CEE ou à CF? Ou seja, como evitar o ensino confessional (ainda que plural) com o conteúdo sugerido exatamente pelas confissões religiosas, como determina o CEE?

Com tanta coisa relevante que nossos discentes precisam aprender, como Filosofia, Direito Constitucional, Tecnologias de Informação e Automação, Educação Financeira, por exemplo, por que tanto desperdício de tempo e energia com algo que a família e a igreja podem perfeitamente se encarregar de fazer? Aliás, se até nisso a escola pública tiver que substituir a família, melhor que esta seja extinta de vez ou que os genitores sejam isentados de toda e qualquer responsabilidade sobre a educação de sua prole.

Nesse contexto, far-nos-ia bem lembrar que o que coloca a educação brasileira entre as piores das piores do mundo é a falta de conhecimentos elementares de leitura, escrita, argumentação e raciocínio lógico, não o fato de não se ensinar, em ER, que, na Páscoa, coelho põe ovos, e que o símbolo do Natal é um velho gordo e barbudo, por exemplo. Isso não pode ser considerado sério pra um país que quer ser, de fato, respeitado internacionalmente.

Com tanto barulho, melhor voltar a sonhar com meu repouso numa rede dentro d’água numa das praias do NE ou com meu passeio pelas inspiradoras ruas da cidade do poeta da “Terra das Palmeiras, onde canta o sabiá”, já que não posso esquecer que no meio do meu caminho tem um componente curricular...

Bons sonhos de Natal!