Casamento moderno
Ali já não rola mais nada há muito tempo. Ela é mais chegada a meninas e ele adora uma gandaia, passa mais tempo na mesa do bar do que em casa ou no trabalho. Porque é que então tiveram filhos, e logo dois? É que faz parte, assim como faz parte o ladrilho hidráulico com o qual decoraram o banheiro novo bem como a cozinha americana que mandaram construir. Segundo explicaram para os amigos, o objetivo da cozinha era acabar com fronteiras e limites, eliminar a separação entre o produzir e o consumir, abolir as diferenças entre o servir e o ser servido, ajudar na superação da divisão em classes e contribuir para a derrocada do machismo.
Entenda-se o "background" para tanta teoria: a mãe da moça é desembargadora. A magistrada é a alma do negócio, porque ali só ela mesmo é que tem grana. Tendo passado por cinco casamentos e outros tantos amasiamentos, levou a vida cuidando da carreira. Hoje, velha e doente, sente remorso da vida fragmentada que levou. Na ânsia de juntar os cacos, esbarrou na filha, ou melhor, naquilo que restou mais ou menos incólume do campo de batalha. Prometeu-lhe generoso apoio, comprou a casa e pagou a decoração. Em troca, mulher forte e voluntariosa, queria os netinhos. Quis e teve.
Os meninos agora andam por aí, na mão de babá, também paga, é claro, pela verba da velha. Mãe e pai chegam tarde em casa, estressados. É celular tocando o dia todo e o polegar chega a ficar doído de tanto digitar mensagem. Quando não é tela, é telinha e os olhos estão cansados de tanta leitura na diagonal, cabeça pesando do vazio dos compromissos furados, das desculpas esfarrapadas e das tentativas para tentar viabilizar fantasias e ilusões. Encontram os filhos na frente da televisão, babá e empregada esparramadas nas poltronas. À guisa de saudação, disparam logo uma saraivada de broncas e proibições e mandam os filhos para a cama para poder ir para a cama também. Mas, ali já não rola mais nada há muito tempo.