O PUDOR DAS CRIANÇAS

Recostada na cadeira de trabalho, em contraluz, diante da mesinha, revestida de toalha cor de canela, que tapa a braseira de cobre – onde, em frias tardes de Inverno, ardem brasas rubras, – a zelosa mãe, de agulha na mão, acerta os calções vermelhos, da filha amada.

Pelas extensas vidraças, viradas para a cidadela, penetra leve claridade, que envolve, a pequena salinha, em doce e deliciosa paz.

Luz desmaiada de fim de tarde de Verão. Lá fora, o céu azul profundo, acarmina- se, esmorecendo lentamente, em violeta – sanguínea e em luminosa poalha de oiro em fogo.

Silêncio.

A pequena salita, adormece lentamente em doce penumbra. Tudo se desvanece num misterioso encantamento: o aparelho de TV; o armário, pintado de branco, arrimado ao fundo; a toalhinha cor de canela, a mãe; os calções encarnados…Tudo se esvanece, esfuma-se, perdido na misteriosa luz acolhedora, de entardecer calmoso.

Vem da cozinha, intensamente iluminada, leve tilintar de vidros e metais; e pairam, no ar morno, adocicados e deliciosos odores a chocolate e açúcar acaramelado.

É a filha mais velha que tem o bolo no forno.

De súbito, o repousante silêncio – convidativo à sonolência, – é rasgado por harmoniosa voz juvenil:

-“ Mãe!!! … Como se faz chantilly?”

Um sorriso de bondade aflora nos lábios finos da progenitora.

Depõe os calções encarnados, mais a agulha, sobre a mesa, e lançando meigo olhar para a filha – que de mangas arregaçadas, no limiar da porta, aguarda a esperada resposta, – diz:

- “Mistura manteiga com açúcar e bate muito bem…muito bem…muito bem…Depois, junta-lhe um cibinho de…”

Afobada, de braços balanceando, boca a transbordar sorrisos chilreantes, olhos vivos, espertos, luzindo de felicidade, entra a caçulinha, em grande estardalhaço.

Beija de fugida a mãe; abraça-a infectuosamente, como querendo dizer: - “ Gosto muito de ti! …”

Espicaçada pela curiosidade, aos saltinhos, quase pardalita travessa, a menininha interroga, ansiosamente a mana querida:

- “O que estás a fazer?!”

Ninguém lhe responde….

Amuada, despeitada, triste, de olhos fixos no vácuo, fica pensativa, a folhear velho caderno escolar, de capa azul, de folhas enodoadas, por muito ter sido manuseado.

Pela escancarada porta de vidro da varanda, entra, trazido pela brisa fresca de fim de tarde calmosa, à mistura com ruídos da rua: guinchos infantis e risos festivos de crianças. São os filhos do doutor ou do Major?

Ao longe, muito ao longe, galos de voz esganiçada, anunciam que começam a ser horas de recolher….

Agora, na salinha, tudo é quase trevas. Na semi-escuridão reluz apenas, na carinha morena, os luminosos olhos castanhos da meiga garotinha, que permanecem parados, tristes e meditativos.

Por sortilégio, quiçá de boa fada, de repente, tudo ganha brilhos e rebrilhos e nítidos contornos.

Foi a mãe, que vindo da cozinha, acendeu as lâmpadas.

-“ Vamos provar?” – Diz, como se a convidasse

Nesse comenos, toca a campainha.

Quem será?!

É a D. Flora, professora, amiga da dona de casa.

Dá repenicados beijinhos à menina e à mãe, e atira, com quatro dedos rechonchudos, beijos à que anda à volta com o bolo de chocolate, que rescende.

Conta novidades: casamento da Néné; maroteiras do filho do Dr. Bento; a lotaria premiada, vendida na Praça da Sé…

- “Vem menina! …Vem provar!” – Insiste, mais uma vez, a mãe, explicando, à visita, que vão a banhos para Foz de Arelho.

Encolhida, envergonhada, enleada, de faces rosadas, avizinha-se; e esta sem reparar no rosto anacarado de acanhamento, levanta-lhe a saia rodada, deixando as calcinhas, cor-de-rosa, à vista, e a perna nua.

Constrangida, humilhada, por se ver descomposta diante de estranhos, a pequenita fica a balancear: a brincar com os dedos das mãos…Com os dedos dos pés…Acariciando os macios cabelos castanhos de reflexos doirados…; mas as maçãzinhas do rosto, enrubescem-se de pejo…

A mãe é mãe. Não é “gente”. Despir-se diante dela, é normal…;mas na frente de visitas…

Indiferente ao comportamento da filha, nem repara no acanhamento, e continua a conversar – num cavaquear de amigas.

Este quadro familiar, tão simples, tão singelo, tão sem importância, não seria merecedor de registo, senão fosse o embaraço da mocinha.

Os pais, por vezes, esquecem-se que os filhos cresceram…Deixaram de ser garotinhos.

Há mães que pedem a empregadas para darem banho aos filhos, e vestem-nos diante de amigas. Olvidando que o pudor das crianças deve ser respeitado.

A cena que vos trago, ocorreu há muito e muitos anos, quando os meninos e meninas eram recatados.

Agora, o pudor, parece estar a desaparecer…

O “progresso” deve-se, em parte, ao: ensino misto, à liberdade paterna e mormente à nefasta influência do cinema e TV.

Essa á vontade, por si, não é má nem boa. Mau é quando descamba em libertinagem e desrespeito pelo corpo.

Humberto Pinho da Silva
Enviado por Humberto Pinho da Silva em 21/12/2015
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