As mãos
Olho o vestido ao pé da cama, como a personificação de um ser desconhecido que me quer falar. Oscilo entre essa visão e a da embalagem jogada num canto do quarto à minha frente. É uma dessas encomendas que vindas do outro lado do mundo, demorou a chegar até mim.
Os dizeres chineses no plástico criam um ciclo em meu olhar, que fita ora o pacote vazio, ora o bordado mal feito do vestido. Eu, que sempre fui perfeccionista, sou tomada por uma irritabilidade aguçada pelo pedaço de renda que se estende com desleixo num canto do barrado. Repugnada, penso nas inúmeras reclamações a serem feitas e reflito, inconformada, sobre o desperdício injustuçado dos gastos e a incompetência das indústrias de roupa.
Mas de repente, a peça estendida conecta -se comigo novamente, feito miragem incerta de algo abstrato que ainda não sei dizer o que é. Pego na tesoura, e impulsionada, vou ao seu encontro. De nada custa consertá -lo.
Classicamente acostumada aos trabalhos manuais daqueles sem muitos segredos, vou serenamente recortando a renda a mais, conforme a linhagem onde terminam os bordados. Todavia, a mesma sensação me invade e uma força maior me impede de prosseguir. Desentendo o porquê de um simples vestido causar -me tamanho pavor. Num desses estreitamentos de espírito em algo misterioso, quando apertada e incubada dentro de mim mesma, sinto a energia unívoca sufocada no comodo. Eu e o vestido, porém não qualquer vestido. E paradoxalmente, um vestido qualquer, vindo de quaisquer mãos que camufladas pelo silêncio, arranham e maltratam - se a carne ignorando a dor em seu trabalho clandestino.
Como quando acariciamos a água do mar, penteando -a entre os dedos, mergulho minhas longas unhas no tecido , buscando desvendá -lo feito uma insana. Nesse instante, ele se torna íntimo para mim. Vejo nas minhas, outras mãos escravas a trabalharem , dançando maquinalmente na repetição das intermináveis costuras. Por detrás delas, os olhos e sonhos apáticos. A alma exausta e morta, subordinada a nós, do outro lado do mundo, exibindo à sociedade nossos belos vestidos rendados. A alma, subordinada a mim.
Encaro minhas mãos sujas de sangue, vejo nelas o açoite que estala sobre os sofridos corpos que eu nunca pude saber, mas torturara tantas vezes antes. E um lindo barrado de renda que poderia ser somente mais um perfeito. Um lindo barrado de renda interminado por este meu carcereiro até então irrevelado. Não qualquer barrado, mas talvez o último barrado dessas mãos exaustas que podem ter fraquejado... Qual de nós terminará o trabalho?
Obs: Escrevi esse texto baseada num fato que me chocou muito dias atrás. Tratava - se de uma postagem circulando no Facebook que trazia a foto de uma roupa recebida por um desses sites famosos de vendas online, acompanhada por um bilhete com a seguinte mensagem : "I SLAVE HELP ME ", ou seja, um pedido de socorro que chegou às mãos da compradora. Imediatamente, pensei em quantas tentativas tal como esta fraquejam, em como situações de escravidão se tornam completamente esquecidas, ignoradas, e pior, patrocinadas e incentivadas sem que os próprios consumidores tenham ciência. Basta fazer uma auto reflexão sobre quantos de nós sabe a procedência exata dos produtos que compramos em lojas ou sites. Mensagens podem ser postadas, textos podem ser escritos, apelos podem ser espalhados mundialmente. Mas enquanto o ser humano não se conscientizar por vontade e esforço próprios, vendo ao próximo tal como se vê com suas necessidades no mundo, nenhuma situação será alterada. Portanto, meu único objetivo não parte da prepotência de pensar ser capaz de mudar uma realidade tão alarmante, mas simplesmente passar minhas próprias sensações e impressões acerca desse cenário, de modo a oferecer um mísero material de reflexão, que tenho certeza, não é nem uma migalha demonstrada dos sofrimentos envolvidos. Minha esperança na capacidade humana de agir com empatia é imortal. Que por hoje pensemos no que nos cabe socialmente e o que nossa consciência nos busca falar. Que não patrocinemos a perda do tempo de vida de outras pessoas, que silenciosamente, hoje e sempre nos estendem uma mão, sedenta por ser acolhida.