Se vou eu não fico, se fico não vou!

                       Rosa Pena



— Cansada de quê?
— Não sei explicar bem as causas. Sei que ando de saco cheio.
— Desilusão amorosa?
— Nada com homem especificamente, mas com a vida no geral.
— Problemas em casa?
— Sempre a gente tem. Novas manchas nas roupas, detergentes mais caro, bifes duros, filho achando que o mundo é uma merda aos vinte anos, marido implicando com a net, irmã competindo doença (minha pressão é mais alta que a tua, viu?), cunhada disputando quem está mais dura (o que sobra aí, falta aqui), metrô cheio, alunos alheios, rugas mais fundas, cabelos que precisam de tinta com mais freqüência, aumento do consumo de cigarro, diminuição de minha capacidade de respiração.
— Mas você não é poeta? Poetas são tão sensíveis.
— Sou, e fico com aquela obrigação de achar beleza até no exame de urina da caçulinha.
— A net te supre muito, né?
— Supria bastante, agora começa a esgotar. Afinal, são quinze grupos que tenho que participar, pois se não entro nos grupos, sou antipática; se fico em web, sou esnobe, se reclamo de muitas mensagens em pvt, sou ranzinza; se não leio ninguém, não mereço ser lida. Todos os dias sou obrigada a esvaziar a caixa daqui (virtual) e deletar duzentos vírus novos (aparecem mais que mendigos do Programa Fome Zero) e deixar a caixa de lá (real) lotar. Se não falo mal de ninguém, estou em cima do muro; se falo bem, sou puxa-saco; se digo que estou cansada, pensam que estou deprimida; se nada digo, sou metida; se falo de amor de homem, tenho paixões enrustidas; se falo de sexo, sou quase uma mundana; se falo de Deus, sou puritana; se falo da vida em geral, comum a todos, minha prosa foi dirigida a alguém que desconheço, que se sente homenageado ou ofendido; se justifico, pioro tudo; se sumo, parece que quero aparecer; se apareço, estou me expondo. Enfim, aqui o filé está mais duro do que o do jantar de ontem, que gerou um climão na mesa.
— Puts! Então por que continua aqui?
— Por não saber para onde ir.



2003
livro PreTextos
Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 01/07/2007
Reeditado em 17/09/2008
Código do texto: T548413
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