O fim do mundo
Há uma ancestral delícia em imaginar o fim do mundo. Se não for nas profecias bíblicas, secularmente repetidas, já nos dispusemos a acreditar no apocalipse Maia, em invasões alienígenas e ultimamente a ameaça zumbi tornou-se tão constante nos filmes que adotamos essa catástrofe como séria, existem aqueles que seguem antecipadamente um confiável manual de sobrevivência e buscam razões científicas para prever semelhante pandemônio. Porém, é mais fácil um cientista incompetente liberar uma praga devastadora do que o terror das religiões e da fantasia nos condenar. Na verdade não precisamos esperar muito para assistir ao fim do mundo.
A catástrofe que destruirá a humanidade não está nos livros, nem nos filmes; da ficção não virá o fim do mundo. E os seres que nos devorarão estão próximos a ponto de não podermos vê-los. Basta notarmos alguns costumes, olharmos algumas paisagens e espaços para nos darmos conta de que o fim do mundo está nos envolvendo diariamente. Se pela escassez de produtos básicos, como a água, podemos prever o descalabro; em Belém, diante da grandiosidade da baia de Guajará, sentir o odor fétido dessas águas é o anúncio de um terrível amanhã. Os igarapés que compõem a bacia hídrica da capital do estado perderam sua função de reservatório, de um recurso valioso. Rebaixados a canais, valas e sarjetas servem somente como o destino daquilo que não sabemos mais aproveitar. Se a tragédia de Mariana matou ou comprometeu a biodiversidade do Rio Doce por um longo período, nas cidades brasileiras, sistematicamente, todos os dias, matamos outras centenas de cursos de água. Já sem nomes, transformados em problemas de habitação, secam e são drenados por uma urbanização incompetente. Quando as enchentes fazem os miseráveis mais sofridos ninguém consegue saber o motivo.
Pode-se morrer de tão variadas formas que também assalta-me uma mania lúgubre de pensar nas possibilidades. No Brasil podemos morrer no trânsito ou na calçada pela imprudência de algum bêbado; se escaparmos de um bandido, ainda restam as balas perdidas, não dá para saber. Terá sido a polícia? Se no hospital, bem, dependerá do atendimento, isso se tivermos a sorte de trocar duas palavras com um profissional de saúde que seja. Mas para minha sorte tenho plano de saúde; na verdade não sei se a cobertura oferecida terá os profissionais e serviços disponíveis quando for necessário; afinal, ele pode falir a qualquer momento. Se eu decidir migrar para Europa poderei acabar sendo atacado por xenófobos ou ser vítima de uma ataque terrorista. Nos Estados Unidos há também os tiroteios periódicos, por razões e oportunidades diversas. Isso para falarmos apenas das ameaças que comovem a atenção da imprensa “séria” ou improvisada. Além do mais, existem tantas outras formas de sofrer a violência descabida de qualquer insanidade e não somente nesses países.
Se ainda assim escaparmos das prováveis situações mortíferas algum golpe de sorte poderá nos lançar frente a um inimigo poderoso, imune a ataques; contudo, repleto de força para recalcitrar. Ele nunca ataca sozinho, se movimenta em hordas, experto e decidido a lutar pelo seu constitucional direito de nos tirar o pouco que resta de dignidade e de esperança. Não serão os zumbis que nos devorarão. Os políticos são a força do apocalipse vindouro. Contra a massa ignorante e inerte acostumada a esperar por um salvador, resignada com a miséria e historicamente manipulável por presentes inúteis; eles, os políticos, arquitetam o fim do mundo a cada sessão de plenário, a cada conversa escusa, a cada conchavo bem sucedido. De posse dos meios materiais, das leis, dos partidos e da mídia constroem uma distopia no presente permitindo que a estupidez seja a ordem que governa. E não há lado que se mostre decoroso o bastante para apontar ao poder que seja um caminho livre de culpa. Não esperemos mais pelo fim. Vivamos enquanto ele nos permitir.