Tempo Crocante
Estranhamente, de um momento para o outro, senti a forte vontade de preencher as células de uma planilha de preto, para deixar os dados se perderem na escuridão. Se não o fossem de importância relevante, deletaria tudo para abastecer a lixeira vazia do computador. Abandonaria a cadeira e tomaria o rumo de um dia de louco com um pequeno sintoma de Alzheimer para esquecer apenas os fatores causadores de estresses, que envelhecem não somente a carne, mas também o espírito. Confesso que tenho andado preguiçosa e pensando constantemente na aproximação daquela linha que divide o século no meio, sendo que não está tão longe, três passos e já me alcançará. Percebo que é por isso que o organismo entrou em desassossego para seriedades, querendo que o corpo se aloje num banco de praça qualquer, num fim de tarde qualquer, para simplesmente ver o corriqueiro que deixei de dar atenção; aquelas andorinhas que pousam na fiação elétrica, dando à frieza dos postes movimentos de asas que se aquietam, após, pontilhando os fios como que compondo pauta musical ou apreciar aquela turma adolescente que saiu da escola deixando o ar sobrecarregado de algazarras e a calçada da praça se regozijando com os passos livres e alegres da juventude. Lembro-me agora que não poderei abandonar os óculos junto com a sobriedade dos compromissos. O grau de miopia aumentou e já ocorreram quatro trocas de lentes. A partir da década anterior, comecei a voltar a andar com a cabeça nas nuvens e não me atentei para a cegueira que se tornou cada dia mais abrangente. Nessas linhas que estou abrindo, vou percebendo que a distração por dentro dos pensamentos se fez muito presente nos últimos anos e sorrateiro chegou o esquecimento de que o tempo sempre acelera os passos mas não impediu-me de ficar parada na menina que faz pedidos às estrelas ou espera um príncipe encantado cujo cavalo perdeu a ferradura no meio do caminho e por isso está demorando pra chegar. Confesso também que escrevo alguns versos na mente e quando pego a caneta para fazer o resisto eles já se apagaram com cores, palavras e pontos. Isso sempre sacode um alerta para o avanço da idade e a vaidade estremece e se desespera. De fato, aquela linha que divide o campo se aproxima e talvez seja isso que esteja revirando os sentidos e não sei como lidar com eles, assim desorganizados. Lembro-me, mais um pouco, do que alguém certo dia me disse; que sou tão virginiana e por isso metódica-perfeccionista até na forma de respirar... E cai agora mais um pensamento; a inquietação por querer abandonar a estrutura sólida para vagabundear a ermo é porque não consigo encontrar bandeirinhas coloridas para enfeitar a tal linha... Melhor não pensar nela e voltar para os cronogramas, projetos e planilhas fazendo de conta que não ouço os passos crocantes do tempo pedindo-me para dar um tempo de apego a mim mesma...