UMA MIRAGUAIA NA PORTA DO SOL
Miraguaia: Peixe de escamas também conhecido como piraúna. Corpo alongado, um pouco achatado, com focinho obtuso e reto em sua parte anterior, boca inferior. Coloração do dorso varia de cinza a marrom escuro ou preto, o ventre é mais claro. Os jovens são mais claros e apresentam 4 a 5 faixas escuras verticais, que se confundem com a cor geral, cada vez mais escura à medida que crescem. Alcança 1,7 m de comprimento total e 50 kg de peso.
UMA MIRAGUAIA NA PORTA DO SOL
Sempre considerei São Vicente uma cidade mais oceânica ou praiana que Santos. Talvez por ter vivido uma infância mágica, em uma época que os filhos eram criados mais soltos que hoje, na qual não havia esse pavor que nos acompanha e fazemos com que nossas crianças e adolescentes vivam 24 horas por dia vigiado, sempre com medo de drogas, assaltos, violência, bullying, seqüestros, etc., nossa turma tinha um convívo com o mar bastante intenso. E houve um período que nossa principal atividade era pescar com varas pequenas na litoral de São Vicente compreendido entre a Ponte Pensil e em frente às obras abandonadas do edifício Porta do Sol. Invariavelmente voltávamos para casa com vários peixes: bagres, salemas, pescadinhas, perna de moça, robalinhos e várias outras espécies. A casa do Zé Guardinha era o ponto de encontro de nossa turma: sete moleques que viviam inventando mil atividades, nem sempre elogiáveis, como brigas de turma, caçar passarinhos de estilíngues, pegar cavalos marinhos para vender, etc.. Mas era outra época e ninguém tinha a consciência que temos hoje.
Quase todas as vêzes que pescávamos próximo à porta do Sol faziámos a travessia até umas rochas que ficam a uns 20 ou 30 metros da costa nos dias de maré baixa. Era um pesqueiro ótimo, dava mais peixe que os outros lugares. Mas sempre ocorria de perdermos linhas com anzol e tudo, e muitas vezes quebrar as varas, devido a fortes fisgadas de peixes maiores que a capacidade dos nossos equipamentos, que não passavam de bambús cortados no Morro dos Barbosas, secados ao sol, com cabrestos feitos por nós. As linhas de nylon, pequenos anzóis e chumbadas a gente comprava no Bazar Boa Sorte, que ficava na Martim Afonso atrás da Igreja Matriz. O dono era um japonês muito sério que trazia suas vitrines muito organizadas e seu estabelecimento de uma limpeza notável. O filho do dono era um garotinho esperto que vivia ali no bazar e a gente gostava de falar com êle. Seu nome era Jiro. Jiro Hashizume.
Resolvidos a pescar o peixe que havia comido nossas iscas e quebrado algumas varas, fizemos um grande esforço e, com uma sacrificada vaquinha, adquirimos no Bazar Boa Sorte uma vara grande, um carretel de linha de aço, anzóis grandes, chumbadas compatíveis, e uma cordinha. Fomos para a casa do Zé Guardinha, que ficava na Marques de São Vicente em frente a minha casa de número 78. O quintal da casa era o lote ao lado, que era um território exclusivo nosso. Montamos o equipamento, compramos sardinhas para isca no Mercado Municipal de São Vicente, onde havia um comércio maravilhoso de pescados, e fomos à luta. Ou melhor, à pesca.
Só um comentário: que boa recordação essas peixarias que funcionavam no mercado de São Vicente! Você comprava peixe ou frutos do mar frescos de toda espécie, muito diferente do que vemos hoje ali.
Atravessamos a Ponte Pensil, um bando de moleques, carregando uma vara bem maior do que as usuais era motivo de gozações de muita gente. Mas fomos em frente. A maré estava baixa, atravessamos o canal, subimos na rocha e começamos os preparativos. Primeiro, por dica do meu pai, catamos um monte de mariscos que eram abundantes nas pedras, quebramos e jogamos no local onde iríamos pescar. Era para “cevar” os peixes, atraindo-os para aquela região. Colocamos a sardinha no anzol, amarramos a cordinha na vara e na cintura do cara que estava pescando e aguardamos. A cada 15 minutos havia uma troca da pessoa que estava pescando. Depois de várias fisgadas e iscas perdidas, ferramos um baita peixe, que puxou o Sandoval Curi (era o turno dele) para água e nós todos mergulhamos para garantir que o peixe não escaparia. Foi um alvoroço. Era moleque berrando de alegria e palavras de alerta para não perder o peixe. Depois de muito esforço conseguimos puxar o bruto para fora d água: era uma miraguaia enorme para nossos padrões. Recolhemos o material e voltamos para casa desfilando aquele tesouro, mostrando aos que haviam feito gozações e calando a boca deles. Na pesagem, feita em açougue, acusou 6,5kg. Uma enormidade. Quiseram comprar, mas não aceitamos. Novamente na casa do Zé Guardinha, limpamos o peixe, cortamos em postas, e congelamos. Domingo seguinte, 7 horas da manhã, levamos a miraguaia e condimentos para Itaquitanduva. A gente entrava na ruazinha do Cortume e atravessava o morro. Era boa hora de caminhada. Fizemos um fogo entre as pedras e preparamos o peixe com côco, segunda ensinado pela mãe do Zé Guardinha, nordestina e exímia cozinheira. Nunca comi nada tão delicioso.