NO FLUXO DAS RUAS, OS PULSOS DE JOÃO E JOSÉ

Que sociedade "urbanizada" somos nós?

O presente assunto dessa minha crônica eu já o ensaiei nesse espaço várias vezes, todavia, no teatro surreal das ruas urbanas, os atos sempre se repetem em novas versões artísticas e aqui falo da dura arte da minimalista, cada vez mais surrealista, sobrevivência humana.

Vivemos um momento de ampla desaceleração das atividades de todos os setores da economia e a construção civil, embora também não tenha sido poupada do “amplo crash”, ainda estertora suas atividades que vinham bem aquecidas, inclusive pelas esquinas das grandes cidades.

Aqui por Sampa, pelo finais de semana, vez ou outra ainda podemos ver as remanescentes “placas humanas” dos marketings de novos empreendimentos milionários, construções que prometem o paraíso da vida, dentre espaços confortabilíssimos de verde que poderia ser de todos, arrematados nos leilões das incorporadoras de grife e que hoje constroem “bairros privativos” por toda a cidade, como se nos fosse possível, -em algum lugar do todo delapidado!- o isolamento pontual e seguro em meio às tragédias sociais e ecológicas que nos rodeiam por todos os lados .

Não somos ilhas humanas, está mais que provado.

Assim, espalhados pelas calçadas , trabalhadores temporários de TODAS AS IDADES, compõem seus mutirões de sobrevivência , todos eles expostos até os ossos sob sol, chuva, calor e frio excessivos, névoa, poluição, violência, acidentes, enfim, todos sem absolutamente amparo trabalhista algum , defendendo, nas suas oito horas de trabalho estático, o ganho de quarenta reais ao dia, sem direito a comida, tampouco ao pagamento pelo direito de “ir e vir” do “trabalho”.

Sei disso porque sempre converso com eles.

O perfil prevalente dessas pessoas é de desempregados, pessoas com baixa ou nenhuma escolaridade, trabalhadores que hoje são doentes inválidos para outras atividades e que não conseguiram seus benefícios sociais, mulheres sozinhas e provedoras de toda a família, idosos fragilizados, alguns já aposentados, mas que tentam compor algum ganho complementar para ajudarem inclusive os netos.

Todavia, percebi que ultimamente os jovens também estão nas esquinas e o mais triste, fora das escolas.

E foi num final de semana dum dia ao “meio- dia” , hora em que eu vinha a caminhar pela calçada recém saída do supermercado e com algumas compras de conveniência na mão ,que eu , e mais uma vez, parei para conversar da vida com dois garotos que faziam seus almoços ali expostos ao meio fio, juntamente com as suas marmitas das calçadas.

Tratava-se de mais uma história de “ João e José “ dessas que pontuam tantos versos de poetas consagrados na História e que poderiam ser nossos filhos.

A princípio percebi que me estranharam porque obviamente não há olhos suficientes pelas ruas de hoje, os que ao menos identifiquem tantos dramas do teatro social ali expostos tão nú e cruelmente, muito menos sentimentos a auscultar os pulsos acelerados das vidas invisíveis à espera do fluxo das prioridades que nunca lhes chegam.

Joões e Josés anônimos à espera de migalhas de versos que sequer saciariam o mínimo da dignidade humana a que todos fazemos jus.

Digo que eram dois garotos, um de quinze anos e outro de vinte e oito anos, o segundo havia concluído o ensino médio ,o primeiro desistira de estudar porque , segundo ele, “hoje não valeria a pena”.

Talvez não estivesse errado, pensei comigo, então assenti na sua agonia cética e sem saída visível por ora.

Explicaram-me que estavam ali “trabalhando”, ao que lhes cumprimentei de coração pela nobreza da escolha pelo seu ofício de lutar pela vida. Expressei meu pensamento e eles me sorriram.

Sim, poderiam ter optado por outro caminho “mais fácil e mais trágico”...o que não justificaria a dureza desumana daquele seu trabalho de pedra, sem perspectiva, em tão tenra idade.

O mais incrível e que me motivou a escrever sobre eles: um não tivera como preparar uma marmita , então, me contaram que ali dividiram o pouco que a mãe do outro conseguira juntar do jantar anterior para que , com maestria, compusesse ao filho a marmita do “trabalho” do dia seguinte.

Pelo pouco que conversamos, conversa que travei instigando profundamente o seu pensamento, ainda pude ouvir dum deles, o mais novo, com um certo brilho exclamativo no olhar:

”é mesmo, a senhora tem toda razão, não tinha pensado nisso...”

Ali entendi que pensamento é arma de guerra.

Então nos despedimos depois que me perguntaram meu nome.

“Obrigada, foi muito bom conversar com a senhora”-me disse o menor.

Tive um ímpeto de lhes deixar a sacola das minhas compras mas imediatamente desisti do ato; a tomar a precaução de não agir de forma a descaracterizar e/ ou humilhar a força digna e pulsante de qualquer trabalho intencionado a manter a vida em pé.

Saí dali com uma sensação de dever cumprido, algo como “conscientização sobre si e sobre o outro no mesmo espaço do todo do social”, todavia, confesso que com uma dedução interior muito cáustica, que tentei refutar.

Senti dor...

Que sociedade somos nós que fechamos os olhos às tenras vidas que sobrevivem das desconstruções de quem deveria construir, não apenas os arranha-céus da cidade?

Onde haveria um competente “ministério de gentes”?

O mundo mudou, é óbvio que sim, como também mudaram todas as formas das escravidões.

O pensamento talvez nos seja o único caminho para se estourar com força incontrolável as tantas das nossas invisíveis algemas.

E por aqui, cada vez mais inquebrantáveis...