Não Ficção

Duas horas seguidas em um ponto de ônibus. Agora a coisa tá complicada, eu preciso descer na cidade, lá no centro, e pegar outro que vai me levar até a zona sul. Moro no Morro da Mangueira, e trabalho no Leblon. Distante.

O trânsito geralmente é uma merda. Chega ali na Avenida Presidente Vargas, os ônibus começam a se amontoar, os carros começam aquela coisa de buzinação que sabe que num vai dar em troço nenhum, e as pessoas começam a ficar irritadas já às sete da manhã. Às sete da manhã e o povo já está de mal humor. Ou não dormiram, ou não transaram, ou as pessoas com quem pretendiam transar dormiram. Acontece. Super normal isso.

Já chego no serviço cansada. Já chego na casa de dona Sofia destruída. Esses dias cheguei vinte minutos atrasada, e todo mundo esperando eu chegar pra fazer o café da manhã. Como pode, né? Monte de gente criada, maior de idade, e ninguém sabe por uma mesa. Num sei, mas acho que se eu morrer, e eles num conseguirem outra empregada, morre tudo de fome. Cheguei, fiz o café, torrei o pão de forma do patrão, abri o iogurte da patroa, e o filhos deles ainda nem tinha acordado, mas já coloquei foi o sucrilho logo na tigela, e a tigela na mesa com um pano em cima, pra depois num me estressar. Garoto de trinta anos, ainda vive de sucrilho, miojo, e do dinheiro dos pais. Minha época, nessa idade, eu já era mãe de três, e meu mais novo era escravo no Mc Donald. Aí o meu menino morreu por causa de uma pneumonia, de tanto cheirar fumaça de gordura. Esse povo num entende da vida não, esse povo.

Chegar em casa era também missão horrível. O trânsito da peste. Num sei de onde sai esse povo todo que anda de carro em volta da Lagoa. É tanta gente, tanto carro, que num sei nunca que horas vou chegar no morro. Tem dia que chego em trinta minutos. Mas tem dias que a novela das nove já acaba, e eu ainda tô passando na Feira dos Paraíbas em São Cristóvão. Mas eu até que gosto desse caminho, viu? Fico imaginando eu morando nesses prédios grandes, todos cheios de charme, bebendo vinho e olhando pros pobres aqui embaixo, no engarrafamento. Rico não pega engarrafamento. Eles andam tudo de helicóptero.

Eu vejo novela e me vejo muito ali. Os patrões, sempre falando baixinho. Mas que quando tão sozinhos gritam a vida toda. Patroa é assim, grita muito. Me irrita. Grita quando tô perto. Mas ela me respeita. Patrão já é mais a dele, sabe? Lê o jornal, assiste o jornal, ouve o jornal... Tá aí um cara bom pra se pedir informação. Deve saber de tudo.

Não vou dizer que minha vida é ruim não. Só podia ser melhor. Meu marido num ajuda muito em casa, bebe todo dia, e vem de graça pra cima de mim. Precisava ver quando era mais novo. Tão educado, sabe? Tão bonito, Ramiro. Hoje tá lá barrigudo, se peidando todo, e sem trabalho. Vive dizendo que vai ganhar na loteria, que vai ganhar dinheiro no bicho. Tô esperando. Mas num vou reclamar não. Ramiro é bom pai, sabe? Nunca gritou com os meninos, sempre foi a dona-de-casa. Eu morria de rir com os colegas dele do bar zoando ele por ser a dona-de-casa. Ele morria comigo. Esse pinguço. Amo esse besta. Mas ele tem que trabalhar. Temos que ajudar nossos filhos. A gente deu educação, deu instrução, mas viver no morro e passar dificuldade pode levar todo mundo pra bandidagem. Deus me livre ter filho bandido! Deus me livre perder um filho meu de tiro. Mamãe dizia que preferia um filho morto em acidente, sem sofrer, que ver um filho preso. Tá errada não!

Por isso que enfrento esses caminhos todos os dias. Vou pensando que minha vida é tipo uma novela. E quando entro no 474, coloco o fone no ouvido, boto na JB FM, e imagino que tô indo pra minha cobertura, beber um vinho, comer um queijo, e ver a novela da vida passar... Ah, mas aí eu tenho que descer no centro e trocar de ônibus. Aí essa baldeação vai e empata minha imaginação bonito.

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 03/12/2015
Reeditado em 03/12/2015
Código do texto: T5469268
Classificação de conteúdo: seguro