secos e molhados
Fazia muito tempo que não chovia na cidade. Uns oito ou nove meses. O pasto, outrora verde, já não existia mais. O leito do rio secara. Só a plantação de mandioca ainda resistia a força da natureza. Mas as crianças continuavam brincando, alheias ao problema. Já não choravam, não se queixavam, estavam condicionadas a realidade do lugar. Como seres mutantes, criaram anticorpos à fome e a sede. E brincavam, com pedaços de pau, pedras, ossos de animais. Como na pré-história. Século XVI, como isso é possível? Pode, pode sim. Tem disso no Brasil, na África, na Ásia, no leste europeu...Não a seca, exatamente, mas a miséria. Miséria é miséria em qualquer canto. Desigualdades sociais. Uns com internet, outros, nem bolinho de carne na lanchonete. Lanchonete, dessas com o um grande M amarelo, também é artigo de luxo, em alguns rincões. Nas favelas, nos bolsões de pobrezas, os points são biroscas, onde, não raro, chacinas ocorrem de tempo em tempo. Cinco, seis, sete pessoas mortas de uma só vez. A guerrilha silenciosa, a guerra civil brasileira. Enquanto isso, lá na cidadezinha longínqua, nada de chuva.
Já em outros lugares, chuva demais. Crianças coradas e fortes, com casas confortáveis, brinquedos e escolas, agora sem abrigo, sem comida, sem lar. Temporariamente. A enchente, apesar dos pesares, é mais drástica do que a seca. A seca é como a doença, que lentamente vai debilitando o paciente; ora ele melhora, reage; depois sofre as recaídas, e aí vai indo, levando, até a morte. A enchente pode ser comparada a um trágico acidente. Você acorda de manhã, saudável, feliz, cheio de vida. Então, na primeira esquina, um caminhão descontrolado corta sua frente. Sangue, fratura, traumatismo, u.t.i. E a recuperação, as seqüelas...Nada será como antes, depois de um acidente ou de uma enchente. O fator água. Quando falta prejudica, quando excede é trágica. E alheios a isso, os meninos da seca brincam, felizes, com os pedaços de pau, as pedrinhas, os cornos do boi.