Jurema e o Silogismo Dialético
Dona Jurema dos Santos Silva, como sempre o fazia todas as manhãs, ao entrar no ônibus, mesmo antes de pagar a passagem com um vale transporte, girou o pescoço em cento e oitenta graus para um rápido exame do interior do coletivo. Buscava com o olhar treinado e competente um banco vazio, mais para proteger-se do que propriamente descansar. Pois, nesses horários de pico os punguistas e os cretinos abundavam os corredores abarrotados dos coletivos oriundos dos bairros populacionais. Os primeiros, os punguistas, aproveitavam-se do caos para “trabalhar” e os segundos, os cretinos, para roçarem-se maliciosamente nas mulheres, sem quererem saber se elas gostavam ou não. Assim que, por sorte, Dona Jurema avistou um banco salvador, vindo a sentar-se ao lado de um sujeito que folheava distraidamente um ordinário jornaleco de tiragem diária e de conteúdo duvidoso. Dona Jurema mal sabia ler e, além disso, pouco importava o que estava escrito naquele jornal. Mesmo assim, observava tudo em sua volta, sem naturalmente, nada registrar em seu cérebro. Pois, daquilo nada era digno de registro. Todos os dias havia as mesmas coisas. Sempre os mesmos cretinos esfregando-se nas mesmas mulheres. Uns mesmos idiotas falando sem convicção dos mesmos assuntos. E outros, como Dona Jurema, calados o tempo todo, mas, atentos a qualquer movimento. De maneira, que bastava descer do ônibus e tudo era rapidamente esquecido.
Dona Jurema, para estes governos que entram e saem, não passava de um número estatístico; um insignificante mortal, do espécime bem comum: pobre e analfabeto, que prolifera aos milhões como ratos por este país. Por outro lado, era proprietária, porém, de um patrimônio muito interessante, - semelhante a uma iguaria de estação específica – muito apreciado em época de eleição: um título eleitoral.
Na verdade, Dona Jurema era pobre sim, mas uma pessoa honesta e trabalhadora. Nossa diarista levantava-se antes de o sol nascer. Tomava um café magro, com aquele leite ensebado, de pacote; pão amanhecido e margarina. Preparava a marmita do almoço, geralmente com feijão, arroz, umas rodelas de tomate e ovos fritos. Em dias de gorjeta, o cardápio engordava com algumas asas ou pés de frango. O trabalho de diarista não é fixo, mas, existe a vantagem de no final do dia trazer um dinheirinho certo para casa. Havia algum tempo que trabalhava alternadamente de segunda a sábado para três famílias de grã-finos da cidade, conforme suas próprias palavras, ao referir-se aos patrões. No bairro da periferia onde morava, um conjunto residencial com financiamentos da Caixa Federal, desses que aparecem nos exames de DNA dos mutuários, ou seja, uma vez contraídos passam de pai para filho,
Dona Jurema era muito estimada. Católica fervorosa participava dos terços e era militante de carteirinha das atividades paroquiais e da comunidade. Separada há alguns meses, por sua própria iniciativa, com quarenta anos nas costas e uma tardia gravidez na barriga, deixada de herança pelo ex-marido, Dona Jurema dava um duro danado para manter a filha de cinco anos e o filho de três, os quais deixava em uma creche pública, próxima de casa, para poder trabalhar. Mesmo assim, dizia ser mais feliz na solidão. “Agora sou livre; posso ir aonde me apraz, já não sou mais uma esposa. Mas quero ficar completamente livre; não quero ter mais nada a ver com aquela pessoa”, costumava dizer sem o consentimento do coração. Na verdade, descobrira há pouco tempo o que ele era: sua vulgaridade, sua falta de amor, seu egoísmo absoluto. Fora às surras, os porres e as drogas, nem sabia dizer o quanto era horroroso o que tinha descoberto dele. Sentia vergonha de ter tido ciúmes e tê-lo idolatrado um dia. Do fundo da alma, Dona Jurema ansiava realmente por esquecê-lo.
O ônibus que tomou naquele dia era o de costume, ou seja, o das sete e trinta em ponto. O homem do jornal, ao seu lado, fixou sua leitura na reportagem que se referia à manchete de capa estampada em letras garrafais: COLIFORMES.
Dona Jurema além de mal saber ler, nem enxergava direito às letras miúdas da reportagem, que em síntese tratava-se de um “furo bombástico” em que um repórter local havia descoberto que a água consumida na cidade era literalmente uma merda. Em segredo, e por análise química de amostras, técnicos da empresa haviam detectado a presença de coliformes fecais na alardeada água tratada da Companhia que abastecia a cidade. Foi a primeira vez que Dona Jurema viu a palavra “coliforme”, ou pelo menos prestou atenção na sua existência. Também nem quis saber seu significado. Porém, distraidamente repetiu baixinho com seus botões: "coliforme!"
O homem que ao notar sua companheira de banco olhando para seu jornal pensou que Dona Jurema também lera a reportagem e comentou com ironia e boa dose de revolta:
- por isso que cobram caro o esgoto na conta de água, pois bebemo-lo também! Ela concordou com um gesto de cabeça, mais por cortesia do que compreensão. Permaneceu calada, como sempre fazia em quase todas as situações, até mesmo porque daquelas coisas pouco entendia e nem queria entender. Até há pouco tempo morava em uma favela e nem água encanada possuía. Praticamente analfabeta, seu ideal nem era viver, bastava agüentar a vida. Criar os filhos, segundo ela, longe da favela. Tinha visto demais e conhecia como ninguém a famosa lei do silêncio. Não quero meus filhos favelados, costumava dizer.
Um vizinho daqueles chatos puxadores de terço nas novenas e secretário do padre nas missas dominicais explicava incansavelmente, e sem que, naturalmente, Dona Jurema entendesse que “favelado”, “rico”, “pobre”, etc seria muito mais um estado de espírito do que uma condição social. “Tem muita gente rica que se comporta como favelado e muito favelado que jamais jogou na rua qualquer tipo de lixo”, gostava de dar como exemplo o tal Ministro da Paróquia.
Até que um belo dia a assídua pastora, Dona Jurema, entendeu a “parábola do estado de espírito”, de uma maneira até bem surrealista. Foi quando apareceu em seu portão um cão vira-latas, magro e sarnento e, fazendo jus ao poço de bondade que era resolveu repartir a miséria e acolher o cãozinho. Pois, além de gostar muito de animais, costumava dizer que os cães também eram seres humanos, a exemplo de um Ministro de Estado que havia passado pelo governo e que incluía, por estudo e pesquisa, os cães, na teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin. Pois bem, Dona Jurema recolheu ao seu lar o animalzinho dando-lhe comida e carinho, assim como fazia com outros dois cachorrinhos que ali viviam desde pequenos. Comentou inclusive, com os colegas de reza, em tom solene, "poderia tratar-se do novo Messias", cujo retorno a este Mundo era anunciado nas Escrituras e que talvez tivesse batido em sua porta, em forma canina, a fim de testar sua sinceridade altruística.
Além dos cachorros, Dona Jurema criava uns franguinhos os quais sempre viveram soltos no pátio em perfeita harmonia com os primeiros cães, sem nunca ter dado qualquer problema. Com o tempo, já gordo, forte, curado das sarnas e bem alimentado o vira-latas, revelando-se um traidor, como Judas, defeito intolerável aos olhos de Dona Jurema, matou sem piedade todos os indefesos galináceos enquanto ela trabalhava. Ao chegar à tardinha, com os últimos raios de sol, cansada pelo trabalho e estressada pelos incansáveis e inevitáveis envolvimentos com os mais variados problemas dos patrões, deparou-se com o estrago feito pelo ex-vira lata. Transformou-se rapidamente na fera urbana quando o mais pacato dos seres humanos é contrariado ou traído em suas convicções. Estado em que os psicólogos, mais ou menos, tratam por dissonância cognitiva. De maneira que, ao ultrapassar o limite da tolerância por tal ingratidão, enxotou o canino do seu quintal. Sem antes, porém, sentenciar: “para quem tem a favela no sangue, não adianta o amor, o carinho ou a riqueza, será sempre favelado. Ser favelado é mesmo um 'estado de espírito!'”.
A essa altura da vida, Dona Jurema ainda era muito pobre, porém estava satisfeita – ou pelo menos parecia estar – com o pouco que possuía. Vinha freqüentemente conversar com a vizinha, mais com o pensamento no aparelho de televisão e os olhos nas novelas do que trocar idéias ou nutrir sonhos para o futuro. Mas era simples nos seus prazeres e sincera quando prestava pequenos serviços aos outros. Dizia não sentir muita atração pelo dinheiro nem pelo conforto físico, mas deixava-se facilmente arrebatar pelo entusiasmo das pessoas. Em uma dessas jornadas à casa da vizinha com o intuito de ver a novela das oito que Dona Jurema acabou assistindo sem querer o final de um telejornal, onde passava uma reportagem em que afirmava que praticamente em todos os quitutes das baianas vendidos nos tabuleiros das ruas e praias de Salvador foram encontrados, após análises encomendadas pela emissora, os tais coliformes. Dona Jurema lembrou-se do dia do ônibus e de novo falou baixinho mais uma vez: "coliformes!"
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A vida ia passando e a barriga da Dona Jurema crescendo cada vez mais. O dia do parto aproximava-se. E ela começou a prestar mais atenção nos telejornais chegando mais cedo à vizinha. Na verdade o que ela tinha visto no outro dia, era uma parte de uma série de reportagens sobre produtos comestíveis, como pastéis, bolos, sorvetes vendidos nas praias e ruas de todo o país sem as devidas condições de higiene que ficou provado, segundo a emissora, todas conterem coliformes fecais. De maneira, que Dona Jurema via todo dia coliformes para lá e coliformes para cá. E, ser pobre, senhores! É uma merda! Mas, a ignorância então é muito mais que uma merda! É uma peste tão daninha que dona Jurema gostou daquela palavra sem ao menos se preocupar em saber seu significado. Gostou e pronto. Tanto, que decidira definitivamente que o nome do seu filho que iria nascer seria "Coliforme". E pior, comentou com os amigos. Desesperados, muitos disseram: mas Jurema, este nome é uma merda! - Não interessa, dizia. Está decidido. O filho é meu e assim será seu nome.
O Secretário do Padre e Ministro das missas era o principal opositor aos gostos de Dona Jurema. E, ela poderia até ser analfabeta, porém era capaz e inteligente. Senão vejamos, senhores: no diálogo a seguir Dona Jurema, prova que o raciocínio, a lógica, enfim, está ao alcance de todos. Basta treinar. E com absoluto desconhecimento dos modismos dos IPad1, 2, 3 ,10, Smartphone, face book, WhatsApp, Twitter, Instagram, et cetera, restava-lhe a ginástica cerebral, para a qual não se necessita academia. Pensar e trabalhar duro era o que mais tinha feito até aquela altura de sua jovem e sofrida existência. As agruras da vida, como a fome e a falta de teto, por exemplo, fazem escolher caminhos alternativos, mesmo que estes não sejam os mais certos. Como disse, por exemplo, um poeta: “a necessidade é maior do que a moral”. Assim que, Dona Jurema, sem saber, obviamente, deu um show de silogismo dialético, e detonou a "tese" de o fanático Rezador de Novenas de que o nome escolhido para seu filho era uma merda:
- O Coliforme está em todos os lugares, certo? Perguntou Dona Jurema ao eloquente pregador nas novenas, e que também tinha visto as reportagens.
- Certo. Respondeu o rezador.
-Segundo seus próprios sermões, quem está em todos os lugares é onipresente. Certo? Perguntou mais uma vez Dona Jurema.
-Certo. Respondeu o rezador.
-Se o Coliforme está em todos os lugares é onipresente, certo? Indagava Dona Jurema.
- Certo, respondia o impaciente puxador das rezas.
- Deus é bom, certo? Perguntava novamente.
- Claro. Deus é bom! Concordava entusiasmado agora o rezador.
- Deus é onipresente, certo? – insistia Dona Jurema.
- Certamente, respondia mais entusiasmado ainda, o Puxador das rezas.
- Então, o Coliforme é bom? Ou Deus, louvado seja seu santo nome, é uma merda? Perguntou a devota Dona Jurema, com ares de quem tem anos de prática forense.
Com cara de sete a zero e, desorientado, o secretário do padre murmurou:
- O Coliforme e Deus são bons. Aprovando por completo o nome do futuro cristão.
Dona Jurema, apesar da pobreza extrema, tinha brio e patriotismo e havia abdicado das tais bolsas sociais em troca de seu voto nas urnas. "Quero votar com liberdade e 'sem rabo preso de consciência'... Quero viver e criar meus filhos com o suor do meu rosto e não com esmola!". Costumava dizer com certo orgulho.
Sem acompanhamento pré-natal, sem médico e apenas com a presença de uma amiga parteira, Dona Jurema deu à luz a um saudável e robusto menino. Conforme sua vontade, o batismo aconteceu na igrejinha da comunidade sob os auspícios do renitente Ministro da Igreja e registrado no 2º. Tabelionato de Registro Civil da cidade com o nome de Coliforme dos Santos Silva.
O jornal era popular e de péssima qualidade editorial, por isso penso que a manchete daquele dia simplesmente deveria ser: MERDA. Pois, essa palavra qualquer um sabe o que significa, em especial a classe pobre do Brasil.