Considerações em torno de um haicai
        
  Escrita de 06/02/2008 - Republicação



 
         06 de fevereiro de 2008, quarta-feira de cinzas. Hoje de manhã publiquei, no Recanto, o haicai de verão IX, que diz: "As ruas de ontem/ na quarta-feira de cinzas./ Mendigos de sempre." Recebi, logo após a publicação, o comentário de um companheiro do Recanto, no qual ele afirma, com muita justiça que"...a diferença entre os mendigos de corpo e os de alma, é apenas a profundidade do olhar que lhes dirigimos." Não tendo recebido, até agora, outras comunicações de igual ou de diverso teor sobre o meu referido texto, mas tocada pelo que li de manhã e achando que esta é uma questão importante, que pode interessar também a outros leitores, comecei a escrever esta crônica -  creio que o seja, uma crônica, mas não tenho muita certeza de tal classificação.
     Creio que estejamos todos acordes sobre o fato de que a miséria econômico-social de boa parte da população brasileira constitui uma vergonha para toda a Nação; por outro lado devo dizer que concordo, sem ressalvas, com o comentário do leitor do Recanto sobre o meu haicai: a realidade não pode mesmo ser reduzida a fórmulas de qualquer natureza; cada ser humano, independente da sua condição social, carrega em si mesmo um universo infinito, uma única e exclusiva riqueza, riqueza que tantos de nós, quando encastelados em certezas e/ou preconceitos confortáveis, somos incapazes de alcançar e de compreender.
     Por casualidade (existe casualidade?) estou relendo, nestes dias, um dos maiores contistas da literatura mundial, o russo Tchékhov. Em seu conto "A descoberta" há um trecho que vou reproduzir porque ilustra, perfeitamente, o que venho colocando aqui. O conto fala de um homem bem-sucedido, em cuja vida profissional e material as peças estão todas ajustadas. De repente, este homem se dá conta de que poderia ter escolhido para si mesmo uma outra espécie de destino. Eis o trecho do conto:
"... E aí, a propósito, Bakhromkin recordou um caso de seu longínquo passado...Sua mãe, mulher nervosa e excêntrica, saindo uma vez com ele, encontrou-se na escada com um homem estranho, bêbado e hediondo, e beijou-lhe a mão."Mamãe, por que fez isso?" perguntou ele, espantado."É um poeta!", respondeu ela. E ele achou que a mãe tinha razão...Se ela tivesse beijado a mão de um general ou senador, isso seria subserviência, auto rebaixamento, a pior coisa que se pode esperar de uma mulher civilizada; mas, beijar a mão de um poeta, artista ou compositor, é muito natural..."
     Antes que alguém imagine preconceitos de minha parte contra generais e senadores, devo dizer que, em princípio, não tenho nada contra eles. Voltando ao trecho citado, poderíamos substituir perfeitamente o 'poeta' do conto por um místico...ou por alguém que fugiu para as ruas a fim de escapar de um mundo cheio de regras e de vazios de liberdade...ou por alguém abandonado pela própria família...ou por alguém...as possibilidades não têm fim.
     Escrevi esta... crônica essencialmente para tentar alguma justificativa perante o escritor-leitor cujo comentário sobre o "haicai de verão IX" revela uma perspicácia e uma sensibilidade humana excepcionais e porque eu não gostaria que ele se afastasse dos meus novos textos no Recanto. Seu comentário conduziu-me a todas estas reflexões, tanto quanto levou-me a rever o conteúdo do meu haicai. Fica-me evidente que este texto passou (talvez também para outros leitores) uma visão preconceituosa e estreita do mundo, visão que eu sempre tento não ter na vida nem na escrita. De todo modo, abandonar preconceitos e estreitezas é trabalho para toda uma vida, para cada momento e, muitas vezes, não temos consciência dos escuros que nos habitam. Tudo é aprendizado, sempre, por isso agradeço a este leitor. A advertência valeu: obrigada, companheiro do Recanto das Letras.

06 de fevereiro de 2008.