“DO JUS INVENTANDIS” ( cronica juridica)

I

Para os leigos, que porventura venham ler esta história, é preciso esclarecer, mesmo rapidamente, que existem na linguagem jurídica várias formas de se nomear um ramo do Direito. Por exemplo: Quando se trata de regular relação entre pessoas físicas ou jurídicas, dos direitos e obrigações de uns para com os outros entramos na seara do Direito Privado. Por outro lado quando predomina o interesse do Estado, como poder soberano nas suas relações com outros Estados ou com particulares estudamos o Direito Público.

E assim, vários outros como o Direito Social cuja finalidade é regular a melhor forma de solução dos conflitos entre capital e trabalho, ou seja, tudo aquilo que envolve questão de cunho social, embora não exista direito que não seja social.

Há o que os doutrinadores denominam Direito Comparado, que é o estudo comparativo dos sistemas jurídicos existentes em outros paises com o nosso. Conhece-lo não é tarefa fácil porque depende de muito estudo e muito conhecimento, principalmente de outras línguas. Requer vontade, amor à pesquisa e, sobretudo, interesse de fazer justiça de verdade.

Esta historia verídica, entretanto, trata de um direito singular e não raras vezes utilizado por muitos que orbitam na esfera da justiça. Ao contrário do DIREITO COMPARADO, este é de fácil manuseio porque depende apenas da intenção de quem vai aplicá-lo. É o famoso DIREITO INVENTADO. Regula-se pela máxima: O direito é como borracha; quando a gente o quer estica, quando não quer ele encolhe” e os seus operadores, ao aplicá-lo, primam pela insensatez, pela incompetência, pelo despreparo, e, não raras vezes, para favorecer ou ferrar alguém. Felizmente tem poucos seguidores...

II

Tramitava uma Ação Sucessória em Comarca do interior do Estado. Inventário pequeno. Apenas a ex-residência dos pais falecidos era o monte-mór a ser partilhado entre dois herdeiros maiores. Como sempre, via de regra, um sabido e outro desavisado.

O primeiro herdeiro, mais jovem, se adiantara e contratara um advogado que imediatamente cuidou fosse seu cliente nomeado inventariante e em seguida prestou as primeira declarações dando ao imóvel o valor que julgou de seu interesse.

Pois bem. O processo ia se arrastando até que, num belo dia, nosso escritório foi visitado por um dos herdeiros. O desavisado... Abalara-se de sua cidade para buscar socorro aqui.

Queixava-se de que o processo estava parado há cerca de dois anos, e que o inventariante havia tomado posse do imóvel, e lá se aboletara com sua família.

Meia hora de consulta e ficamos sabendo que, em acordo verbal, mas confirmado pelas partes, o inventariante havia se comprometido a pagar ao nosso cliente ½ salário mínimo de aluguel, uma vez que a outra metade lhe pertencia, por direito.

Informamos a ele que era um acordo justo, já que o imóvel poderia ser facilmente alugado por um salário mínimo e o herdeiro inventariante poderia legalmente investir-se na posse no imóvel na qualidade de locatário sim. Apenas sugerimos que fosse feito um contrato por escrito... Fomos interrompidos:

“-Isto ele não quer Doutor. E nem nunca pagou nada. Já tem quase dois anos que está lá e diz que a casa é dele. Por isto estou aqui.”, arrematou um tanto desanimado e outro jeito não tivemos senão o de pegar a causa.

III

Constatada a morosidade do andamento do feito e a maneira como a inventariante administrava o bem que lhe fora confiado, começamos a colocar a casa – não a casa questionada - em ordem e requeremos uma Ação de Prestação de Contas em face daquele que se auto intitulara dono da coisa.

Necessário aqui outra pequena digressão.

É que neste tipo de ação o réu tem duas maneiras de agir , conforme lhe faculta a Lei. Pode contestar a ação negando sua obrigação de prestar contas ou pode prestá-las. Para isto ele tem cinco dias, depois de citado. A única coisa que não pode fazer são as duas coisas juntas. Não existe uma terceira opção. Ou apresenta suas contas ou contesta. Aprendi isto, na Faculdade, estudando Direito Processual Civil. Artigo 115... Eu ainda era um menino...

Pois bem. A Ré contestou em 15 dias... Só que fez uma péssima contestação que na verdade nada contestava, razão pela qual outro caminho não teria o Magistrado senão o de condená-la a prestar as contas pedidas. É assim que funciona. Pelo menos, deveria ter funcionado. Aliás, já funcionava assim no tempo de meu avô, que advogava pelo Código de 1939.

Na audiência verificou-se que o Cartório tinha excedido o prazo dado ao sabido. Ao invés dos cinco dias , como de lei, concedera-lhe 15 dias. “-- Isto dá nulidade”, disse triunfante o MM Juiz que, não sei por que cargas d!água vinha fazendo de tudo para não sentenciar, pelo que retrucamos: -- Data Vênia, Excelência, mas isto não altera nada. Nenhuma das partes saiu prejudicada e o excesso de prazo dado à ré não está sendo contestado, por isto deve ser considerado. A diligente promotora que, sem necessidade, fora intimada para a solenidade, ponderou da mesma

forma, querendo resolver tão simples questão.

É... Mas tem Juiz que quando põe uma coisa na cabeça... Na hora veio na minha novamente a figura do meu avô de quem, aos 15 anos de idade, tinha sido datilógrafo. Ele dizia que “De barriga de mulher grávida e de cabeça de Juiz não se sabe o que sai”. Hoje a gente já tem como saber o que vai sair da barriga da mulher grávida... E o Magistrado, embora sobre protestos nossos e da bela representante do “Parquet”, decretou a nulidade da citação, abrindo novo prazo de cinco dias para o advogado contestar de novo ou prestar as contas dando por encerrada a audiência.

“ Chose de loc” ... Diria o personagem do Jô Soares.

IV

Metemos um agravo retido neles. Mais uma vez, sem necessidade, repita-se, a promotora foi intimada a falar nos autos sobre o recurso e já que fora incluída no feito pelo Magistrado, prolatou um belo parecer contrário à posição adotada pelo MM Juiz. Pugnou pela prolatação da sentença, também.

Mas, o Magistrado se manteve irredutível e as contas foram apresentadas. Mal apresentadas, mas, tendo a parte reconhecido que devia determinada importância. Constatava-se ali, que, de qualquer forma, o nosso pedido de Prestação de Contas, finalidade do processo, fora atingido. O sabido prestara as contas requeridas e reconhecera uma dívida. Bem, pensamos, pelo menos chegamos ao fim; temos um valor. Basta mandar pagar...

Ledo engano. Uma segunda audiência de conciliação foi marcada. A gente não sabia bem o motivo dela, mas aproveitamos e fizemos proposta para a compra do imóvel, descontando-se os valores devidos. Era uma solução. Não foi aceita. Pugnamos pela sentença condenatória, mais uma vez.

O Juiz entrou de férias e seu substituto, depois de pedido verbal de nossa parte determinou, sem qualquer delonga, fossem os mesmos conclusos para sentença.

Satisfeito nosso escritório, satisfeito nosso cliente, nada mais restava senão aguardar a sentença condenando o réu – o inventariante sabido – a pagar o que devia ao seu condômino.

Entretanto, eis que sai - não a sentença- mas uma inovadora determinação para que as partes apresentassem MEMORIAIS em 10 dias.

Em quase 30 anos advogando, jogando e assistindo futebol aprendemos que discutir com juiz e árbitro é baita besteira. Se este marca pênalti não volta atrás nem se houver um telão no estádio. Se aquele dá uma canetada só outra canetada maior desmancha a primeira. Ele não.

Assim, apresentamos nosso memorial nos dez dias concedidos e a outra parte em 51 dias. A gente sabe como é ... Festa do interior...

Bem. Agora vem a sentença, devem pensar... Nada. Vem outra audiência de conciliação, já que o MM. Juiz, que já voltara de suas férias, alega que “ existem rumores extra autos de que há possibilidade de acordo”.

Antes, o Juiz já despachara mandando intimar a promotora para que esta falasse de novo nos autos. A moça já cansada de tanto querer ajudar, desta vez informou delicadamente que nada ia dizer, uma vez que não competia ao Ministério Público intervir naquela bagunça, digo, naquele processo. Poxa, tudo tem um limite. Até a paciência de uma bela e jovem promotora de justiça...

As partes não sabiam dos tais " rumores de acordo extra autos". Bem pelo menos nossa parte. Mas o MM. Juiz justificou a audiência. Não antes de, destemperadamente, aos gritos, ante nossa opinião de que mais uma audiência de nada ia adiantar porque todos ali sabiam o que a inventariante queria, esbravejou “-a lei me permite fazer quantas audiências eu quiser!!!!” - Claro que sim, Excelência. Claro que sim... Vossa Excelência tem toda a razão do mundo, ajeitamos... Como já dissemos não é sensato contrariar alguns juízes. Poucos,é verdade, porque a mentalidade vem mudando com o mundo...

Mais asserenado justificou confessando que “ele” convocara a referida audiência porque pensara no caso e achava que seria uma boa solução o meu cliente passar a usar o imóvel daquela data em diante por seis anos – prazo usado pela ré – e depois deste tempo cada um continuaria com 50% do bem...

Logicamente recusamos e requeremos a juntada de uma petição pedindo o afastamento imediato do inventariante por desídia, ao que o Magistrado e o advogado, imediatamente, se manifestaram no sentido da desnecessidade de tal providência de vez que o réu já estava ali, naquela audiência com as chaves da casa na mão e passaria para o meu cliente a incumbência de continuar o inventário. E fez constar, ali mesmo, que se lavrasse o termo para a substituição.

Agora, sim, vem a pérola jurídica!

Depois de 10 dias, a sentença:

“JULGO PRESTADAS AS CONTAS E IMPROCEDENTE O PEDIDO AUTORAL.!!! ". Foi condescendente. Não aplicou a sucumbência e nem determinou pagamento de custas.

A casa está vazia, o processo no Tribunal e o sabido acabou, neste tempo em que viveu de graça, comprando uma boa casa em outra freguesia. Infelizmente a ética e o bom senso não me permitem contar “ historia de Juiz...”

Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 29/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T546132
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