Um temporal na Serra das Águas
Uma história inesquecível da minha criancice, contada no livro Menino-Serelepe* é, sem dúvida, um passeio a cavalo que fiz com meus pais na Serra das Águas. Ou melhor: a terrível tempestade, que nos colheu na descida na serra.
Confira na narrativa abaixo, e bem assim o VOCABULÁRIO DE AGUINHAS, posto ao final, com o significado de diversas palavras e expressões utilizadas no texto.
Vocabulário de Aguinhas
Às gatas: A todo custo [à gata].
Arroz-pagão: Arroz em casca.
Buscar fogo: Visita rápida.
Cafundó do Judas: Lugar distante e de difícil acesso.
Cavalos:
Chotão: Corruptela de choutão = Cavalo de marcha dura.
Comer estrada: Seguir caminho, rapidamente.
Desamainar: Amainar, abrandar, acalmar.
Dos quinhentos: Refere-se a algo exagerado, grandioso, portentoso.
Encarrancar: Anuviar-se; escurecer-se; carregar-se (o céu).
Esbofado: Com os bofes de fora: cansado; esbaforido; esfalfado.
Escarranchar: Abrir as pernas para montar a cavalo.
Estirão: Grande trecho de rio ou terreno em linha reta. Grande distância em linha reta. Caminhada longa.
Fraga: Rocha escarpada; penedo, penhasco. Terreno escabroso.
Num de-repente: Repentinamente.
Pai Véio: Apelido por que os netos chamavam José Batista Guimarães, meu avô paterno.
Passarinhar: Espantar-se (a cavalgadura). Mover (o cavalo) a cabeça dum lado para outro.
Picar a mula: Sair depressa ou correndo.
Picuá: Cesto, balaio.
Rabo-de-tatu: Relho feito de couro trançado.
Santantônio: Cabeçote de sela.
Silhão: Sela de mulher
Socar canjica: Ato de ficar subindo e descendo sobre os arreios quando o cavalo é trotão [= socador]
(*) Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem é um livro de memórias de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a coletânea HISTÓRIAS DE ÁGUINHAS. V. na abertura do site o tópico Livros à Venda.
Uma história inesquecível da minha criancice, contada no livro Menino-Serelepe* é, sem dúvida, um passeio a cavalo que fiz com meus pais na Serra das Águas. Ou melhor: a terrível tempestade, que nos colheu na descida na serra.
Confira na narrativa abaixo, e bem assim o VOCABULÁRIO DE AGUINHAS, posto ao final, com o significado de diversas palavras e expressões utilizadas no texto.
Aventuras com meu pai
E da fieira de histórias, uma digna de nota foi quando pai resolveu levar eu e mãe pra passear a cavalo a fim de conhecer a parentalha da vó Margarida — os Fernandes e os Ferreiras — que moravam na Ressaca, lá nos cafundós do Judas, bem pra lá do tope da Serra das Águas Virtuosas. Foi uma aventura e tanto: só pra subir no cavalo mãe demorou quase uma hora com medo de escarranchar as pernas na sela, que ela queria silhão, receosa que estava de ficar socando canjica ao sabor das andaduras de um chotão. Mas pai falou que aquilo não se usava mais e que ele tinha dado uns repassos nos cavalos e eles eram bons de rédea, ligeiros de pata e de marcha suave. Enfim, fomos nós, mãe num cavalo piquira, rosilho, malhado e marchador e pai num outro, azulego, estrelado, imponente, indócil, e eu na garupa do pai serra acima, serra abaixo. Serra acima do pé do morro até o cacuruto, depois um estirão pelo Campo Grande, depois Santa Cruz, depois Ressaca. Pai foi chegando e falando: Ô de casa! Viemo pra arranchar. Aumenta a água do feijão!
Passamos o dia na casa dos parentes do pai: tio Jorge, tia Antônia, tia Alaíde e mais Zé Jorge, Zé Augusto e mais um despropósito de ferreirada e fernandada que num acabava mais. Esses eram tantos que só a vó Margarida é que sabia todos os nomes de cor! E pai falava: Parentada boa assim pra existir ‘tá difícil!
No dia seguinte, depois do almoço, pai falou: “Stá tudo muito bão, mas nós temos que picar a mula, pois pode que chova. O Dé só veio buscar fogo, parentada dizia. E aí juntamos os trens e saímos. E afundamos chão, pai tocando os cavalos bem ligeiro, sem rabo-de-tatu e espora, que ele não gostava de maltratar montaria. E só comendo estrada em pouco tempo principiamos a chegar no lombo da serra, com os cavalos já lavados em suor, por via do maior esforço, pois que trazíamos os bornais atochados de broas, ovos e frutas, um picuá com queijos frescos e linguiça defumada, um fardinho de arroz-pagão na garupa, e mais uns frangos gordos dependurados nos arreios. Mas, nesse ponto, os animais começaram a ficar inquietos, com as orelhas que nem tesoura, meio que adivinhando qualquer coisa. E num de-repente o céu encarrancou e um formidável pé-d’água pegou a gente na descida da serra, nas fragas da montanha, numa pedreirama a pique.
Com os cavalos tudo assustado, soprando e bufando, pai tratou de sofrear os bichos, procurando aquietar cada um, batendo-lhes a mão no pescoço; mas esses refugaram, começaram a passarinhar, acabaram por empacar e não mais obedeciam aos comandos. Então, pai desapeou e foi puxando o azulego com a mão esquerda e o rosilho, em que eu mais mãe ‘stava, com a direita. Mas a cavalada resfolegava, saltava, escorregava e não havia meio de querer descer a serra. E foi indo assim, cheio de dificuldade, passo a passo, e a tempestade aumentando: cordas de chuva e vento retorciam as árvores, quebravam os galhos, pequenas cachoeiras desciam pelos barrancos e inundavam o caminho... Pra completar o quadro, baixou uma cerração dos quinhentos e ninguém via nada: nem a gente nem os cavalos, esses perigando desembestar pelas ribanceiras. Era só chuva, raio e trovão que caía do céu; e choro, lágrima e oração que despencava da mãe.
Nesse quadro de botar medo em qualquer um, eu, coração aos pulos, tremia e soluçava; depois comecei a chorar, nervoso, assustado, agarrado na cintura da mãe, pensando na vó e na outra vó mais Pai Véio. Então, lembrei do anjo de guarda, que esses avós me ensinaram que ajudam as crianças, e fui pedindo, chorando, com tremuras de frio e de medo. Mãe grudara no santantônio e pai foi aguentando as pontas, tranquilizando a gente, falando com os animais, serenando os bichos, e assim foi que chegamos, às gatas, com os cavalos esbofando, nas terras dos Francos, que por ali a tempestade foi desarmando e o aguaceiro desamainou. Eu todo encarangado, com as pernas bambas e o queixo batendo de frio.
Mãe nunca mais quis fazer outra aventura dessas, nem quando não era tempo das águas, que em Aguinhas chuva braba sempre, sempre tem uma, ela dizia.
E da fieira de histórias, uma digna de nota foi quando pai resolveu levar eu e mãe pra passear a cavalo a fim de conhecer a parentalha da vó Margarida — os Fernandes e os Ferreiras — que moravam na Ressaca, lá nos cafundós do Judas, bem pra lá do tope da Serra das Águas Virtuosas. Foi uma aventura e tanto: só pra subir no cavalo mãe demorou quase uma hora com medo de escarranchar as pernas na sela, que ela queria silhão, receosa que estava de ficar socando canjica ao sabor das andaduras de um chotão. Mas pai falou que aquilo não se usava mais e que ele tinha dado uns repassos nos cavalos e eles eram bons de rédea, ligeiros de pata e de marcha suave. Enfim, fomos nós, mãe num cavalo piquira, rosilho, malhado e marchador e pai num outro, azulego, estrelado, imponente, indócil, e eu na garupa do pai serra acima, serra abaixo. Serra acima do pé do morro até o cacuruto, depois um estirão pelo Campo Grande, depois Santa Cruz, depois Ressaca. Pai foi chegando e falando: Ô de casa! Viemo pra arranchar. Aumenta a água do feijão!
Passamos o dia na casa dos parentes do pai: tio Jorge, tia Antônia, tia Alaíde e mais Zé Jorge, Zé Augusto e mais um despropósito de ferreirada e fernandada que num acabava mais. Esses eram tantos que só a vó Margarida é que sabia todos os nomes de cor! E pai falava: Parentada boa assim pra existir ‘tá difícil!
No dia seguinte, depois do almoço, pai falou: “Stá tudo muito bão, mas nós temos que picar a mula, pois pode que chova. O Dé só veio buscar fogo, parentada dizia. E aí juntamos os trens e saímos. E afundamos chão, pai tocando os cavalos bem ligeiro, sem rabo-de-tatu e espora, que ele não gostava de maltratar montaria. E só comendo estrada em pouco tempo principiamos a chegar no lombo da serra, com os cavalos já lavados em suor, por via do maior esforço, pois que trazíamos os bornais atochados de broas, ovos e frutas, um picuá com queijos frescos e linguiça defumada, um fardinho de arroz-pagão na garupa, e mais uns frangos gordos dependurados nos arreios. Mas, nesse ponto, os animais começaram a ficar inquietos, com as orelhas que nem tesoura, meio que adivinhando qualquer coisa. E num de-repente o céu encarrancou e um formidável pé-d’água pegou a gente na descida da serra, nas fragas da montanha, numa pedreirama a pique.
Com os cavalos tudo assustado, soprando e bufando, pai tratou de sofrear os bichos, procurando aquietar cada um, batendo-lhes a mão no pescoço; mas esses refugaram, começaram a passarinhar, acabaram por empacar e não mais obedeciam aos comandos. Então, pai desapeou e foi puxando o azulego com a mão esquerda e o rosilho, em que eu mais mãe ‘stava, com a direita. Mas a cavalada resfolegava, saltava, escorregava e não havia meio de querer descer a serra. E foi indo assim, cheio de dificuldade, passo a passo, e a tempestade aumentando: cordas de chuva e vento retorciam as árvores, quebravam os galhos, pequenas cachoeiras desciam pelos barrancos e inundavam o caminho... Pra completar o quadro, baixou uma cerração dos quinhentos e ninguém via nada: nem a gente nem os cavalos, esses perigando desembestar pelas ribanceiras. Era só chuva, raio e trovão que caía do céu; e choro, lágrima e oração que despencava da mãe.
Nesse quadro de botar medo em qualquer um, eu, coração aos pulos, tremia e soluçava; depois comecei a chorar, nervoso, assustado, agarrado na cintura da mãe, pensando na vó e na outra vó mais Pai Véio. Então, lembrei do anjo de guarda, que esses avós me ensinaram que ajudam as crianças, e fui pedindo, chorando, com tremuras de frio e de medo. Mãe grudara no santantônio e pai foi aguentando as pontas, tranquilizando a gente, falando com os animais, serenando os bichos, e assim foi que chegamos, às gatas, com os cavalos esbofando, nas terras dos Francos, que por ali a tempestade foi desarmando e o aguaceiro desamainou. Eu todo encarangado, com as pernas bambas e o queixo batendo de frio.
Mãe nunca mais quis fazer outra aventura dessas, nem quando não era tempo das águas, que em Aguinhas chuva braba sempre, sempre tem uma, ela dizia.
Vocabulário de Aguinhas
Às gatas: A todo custo [à gata].
Arroz-pagão: Arroz em casca.
Buscar fogo: Visita rápida.
Cafundó do Judas: Lugar distante e de difícil acesso.
Cavalos:
Piquira: Diz-se de cavalo de pequeno tamanho.
Rosilho: Cavalo de pelo avermelhado e branco, como que rosado
Rosilho: Cavalo de pelo avermelhado e branco, como que rosado
Azulego: Diz-se de cavalo de pelo escuro entremeado de pintas brancas que, a certa distância, tem um reflexo azulado.
Comer estrada: Seguir caminho, rapidamente.
Desamainar: Amainar, abrandar, acalmar.
Dos quinhentos: Refere-se a algo exagerado, grandioso, portentoso.
Encarrancar: Anuviar-se; escurecer-se; carregar-se (o céu).
Esbofado: Com os bofes de fora: cansado; esbaforido; esfalfado.
Escarranchar: Abrir as pernas para montar a cavalo.
Estirão: Grande trecho de rio ou terreno em linha reta. Grande distância em linha reta. Caminhada longa.
Fraga: Rocha escarpada; penedo, penhasco. Terreno escabroso.
Num de-repente: Repentinamente.
Pai Véio: Apelido por que os netos chamavam José Batista Guimarães, meu avô paterno.
Passarinhar: Espantar-se (a cavalgadura). Mover (o cavalo) a cabeça dum lado para outro.
Picar a mula: Sair depressa ou correndo.
Picuá: Cesto, balaio.
Rabo-de-tatu: Relho feito de couro trançado.
Santantônio: Cabeçote de sela.
Silhão: Sela de mulher
Socar canjica: Ato de ficar subindo e descendo sobre os arreios quando o cavalo é trotão [= socador]
(*) Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem é um livro de memórias de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a coletânea HISTÓRIAS DE ÁGUINHAS. V. na abertura do site o tópico Livros à Venda.