Marias vazias de graça

Tão jovem, tão bonita e apanhando ali no meio da rua. Difícil de acreditar mas o jovem berrava tantos xingamentos que demorou entender o nome da garota. Maria.

Numa rua próxima a mesma cena podia ser vista porém com outras personagens. A moça estava sendo prensada contra o muro por um jovem que lhe dava tapas na cara. Eram tantos gritos que demorou entender o nome da garota. Maria.

No mesmo quarteirão toda gente ouvia aquele homem que jogava as panelas contra a parede enquanto puxava os cabelos da mulher e reclamava aos gritos sobre a ausência de sal na comida. Com tanto barulho demorou entender o nome daquela mulher. Maria.

Violência a granel. Tudo lá pra quem quisesse ver. Tudo ali gritado pra quem quisesse ouvir. As reações foram variadas. A não reação também ficou explícita. Alguns passantes riram achando graça. Outros olharam e fizeram o sinal da cruz apressando o passo. Alguns criticaram tamanha falta de classe e de educação. Outros preferiram observar a cena de longe com braços cruzados. Afinal, nesse tipo de briga não se mete a colher.

Expectadores de todos os perfis assistiram ao espetáculo violento com tanto distanciamento que não ficaram incomodados com tanta facilidade em dar e receber maus tratos. Ausência de surpresa, disseram. Perigoso quando chegamos nesse nível de entorpecimento.

Lembrei da platéia romana assistindo aos gladiadores sendo engolidos por leões numa arena regada a pão e circo. Lembrei de Pilatos lavando as mãos. Lembrei que vivemos numa sociedade que nos mostra constantemente como é natural agredir o outro. Lembrei que aos poucos nos transformamos em genéricos de Pilatos quando também lavamos nossas mãos e reproduzimos frases prontas como “Mas isso não me atinge. Não é da minha conta. Não sabia que podia. Não entendia. Não é comigo. Não conheço nenhuma Maria, desculpe.”

Marias. São tantas Marias cheias de negação. São tantas Marias cheias de invisibilidade que vão perdendo a graça. Maldito é o fruto da ignorância. Ele está no meio de nós.

Quitéria Luma
Enviado por Quitéria Luma em 23/11/2015
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