Minha primeira crônica publicada no Recanto
   Em fevereiro de 2008 (Escrita em algum ano da década de 1990)



                       O ANJO ANUNCIADOR

 
Ofereço a um caro amigo, apenas por causa da nota que escrevi hoje, em 23 de novembo de 2015, agorinha mesmo, logo depois da transcrição deste texto tão antigo mas que diz, infelizmente, de um triste real que não deixou de ser. Ave, amigo meu! Ave!


 
     Na margem da Avenida Bandeirantes, no vão do viaduto, o sem-teto construiu seu teto.
       A casa tem quase tudo, principalmente TV. Pai, mãe, cinco meninos, a família reunida no cômodo único, assistiram ontem à noite à estréia de mais uma novela da Globo, para conhecerem o oceano e o navio cheio dos imigrantes italianos vindos para substituirem os escravos negros nas fazendas de café. Entre os imigrantes, Giuliana e Matteo, ambos com os olhos de um azul impossível de caber em qualquer descrição.
       Meio dia. O solo da casa estremece inteiro sob o impacto do desmesurado caminhão, que passa quase triturando o asfalto. Ardem as paredes de papelão. A mulher estende a roupa no muro do viaduto. Pergunto-lhe se se lembra de alguma cantiga da infância.

       "Era uma vez um campo que se estendia muito além da linha do horizonte. Nele eram gordos os bois, as plantações, os meninos. Nele as coisas cresciam e tudo era bom, até que veio o Pecado" - Assim testemunham os antigos sua versão do Paraíso.

       Nos cruzamentos, veículos aguardam o sinal verde. Os flanelinhas avançam ziguezagueando, junto com os vendedores de frutas, flores, dropes, lixas de unhas.
       A jabuticaba dos olhos, fruta redonda, negra, saltando das órbitas. A água escorre pelo pára-brisa, você me olha, estendo-lhe rápido as duas moedas pela fresta mínima e imediatamente ergo a ponte levadiça do castelo, agora inexpugnável, enquanto você continua a se escoar por entre os autoimóveis.
       O casal toma o café-expresso e conversa em alemão no bar cosmopolita, global, invadido pelo pequeno bárbaro apontando-lhes um canivete, para roubar seus pães-de-queijo. O guarda age com eficiência. Logo mais, o pequeno bárbaro, como num passe de mágica, se transformará no grande bárbaro e matará.
       Muitos e infinitos pequenos e grandes bárbaros, em todos os lugares e matando por tudo, matando por nada, nos cruzamentos, Bancos, bancos, residências, cinemas, parques; nas fazendas...em emboscadas...Bárbaros informais, bárbaros a rigor, por causa, sem causa, bárbaros dos quais todos os civilizados são reféns. Mas, onde os civilizados?
       Cidade medieval, mãe dos feudos com seus senhores, mãe das putas com seus filhinhos, mãe dos gringos com suas Línguas, dos nós de todos nós assim uns contra os outros, mas fios do mesmo tecido, assim desmesurados e mínimos, assim sem saber onde nem como começamos e findamos, assim ignorantes de em qual esquina podem coincidir, de repente, as imagens do teu, do meu, do vosso apocalipse, ou o rosto do nosso renascimento.





Nota deste instante, em 23 de novembro de 2015. E no entanto, mesmo debaixo do viaduto, fizeram Arte, conseguiram. A Arte garante a respiração possível, quando tudo o mais falta.