Por que Star Wars faz tanto sucesso?
Politicagem espacial, sabres de luz, e uma relação muito desencontrada entre pai e filho: quem diria que isso faria o sucesso que fez?
Star Wars é uma das mais marcantes sagas cinematográficas. Foi tão fundo na cultura popular que se você não assistiu aos filmes é certo que já perdeu alguma referência feita a eles, seja em outros filmes, seriados, ou pelo seu amigo nerd que cantarolou uma imponente marcha imperial quando dominou toda a Ásia no War.
E é muito louco imaginar que desde a década de 1970 pessoas do mundo inteiro se reúnem, à distância, em torno de uma mesma história, com os mesmos personagens, sentindo muito possivelmente as mesmas emoções – e que, se a Disney não ferrar tudo, pode continuar acontecendo século XXI afora.
Céticos que somos, podemos praticar aqui a crítica vazia: tudo isso é criação de Hollywood e seus executivos diabólicos criando manipuladoras estratégias de marketing que nos tornarão espectadores bovinos frente a qualquer história com fascinantes efeitos especiais.
Bem, isso tem lá sua dose de verdade. Mas e é só?
Afinal, por que é que Star Wars fez tanto sucesso?
Vamos arriscar uma explicação mix: metade sociológica, metade antropológica, e com uma pitada de psicologia. Para isso, usaremos da Jornada do Herói que se você, meu jovem padawan, fez seu dever de casa, já deve ter uma ideia do que se trata.
[A Jornada do Herói, ou, como contar uma boa história.]
George Lucas, ao criar a trama de Star Wars, confessadamente se inspirou na chamada Jornada do Herói, e foi esse o grande truque do cara.
Vamos supor que alguém analisasse as diferentes histórias que existem nesse curioso planeta azul que é o nosso. E analisasse não apenas as histórias de diferentes culturas mas também de diferentes épocas.
Desde narrativas mitológicas, passando pelas religiosas, e chegando até as narrativas literárias; vamos imaginar que uma boa parte disso tudo fosse analisado.
E que desta análise fosse percebido algo muito curioso: ora, existem elementos narrativos que se repetem!
Mesmo em povos que nunca entraram em contato uns com os outros, seja por distância física ou temporal, lá estão os mesmos elementos narrativos aparecendo e dando a impressão de que diferentes histórias são, num certo sentido, a mesma história, uma perpétua recriação, como se houvesse um padrão narrativo.
Joseph Campbell (1904-1987) foi um antropólogo dedicado ao estudo dos mitos e foi exatamente esta a análise que ele fez e foi a este resultado a que ele chegou.
Daí viria isso da Jornada do Herói.
O herói, que é o protagonista de uma história, realiza uma jornada que no seu plano essencial sofre mínimas variações, independente da cultura e do tempo a que pertença.
Basicamente, todo herói passa pela Separação (do seu mundo), pela Iniciação (noutro mundo) e finalmente pelo Retorno (ao seu mundo, mas agora noutra condição).
Lendas orientais, mitologia grega, as fantásticas histórias bíblicas, o herói tá sempre nessa trama separação-iniciação-retorno. O lance central é que o herói passa, sempre, por uma grande jornada de transformação.
Mas por detrás de um esquema simplista, que muito lembra a cobrança das nossas professoras de redação, que sempre insistiam que um texto deve ter Introdução, Desenvolvimento e Conclusão, essas três etapas da Jornada do Herói se complexificam em muitas outras subetapas.
E são tantas, e tão plásticas e adaptáveis, que um jovem diretor de cinema viria a usá-las como estrutura para uma grande saga numa galáxia muito, muito distante – George Lucas foi aluno de Joseph Campbell.
[Esmiuçando a Jornada do Herói.]
Comumente, e seguindo a divisão que Christopher Vogler (1949-) estipulou pensando justamente na aplicação pragmática para o cinema, divide-se a Jornada do Herói em 12 (sub)etapas para além da Separação, Iniciação e Retorno.
Assim, a jornada do herói começa com o (1) Mundo Comum, que é a apresentação do mundo cotidiano e sem-graça do herói – tipo uma fazenda de umidade num planeta desértico. O mundo comum é importante na medida que fará o contraste com o mundo especial que o herói descobrirá durante sua jornada.
É aí que vem o (2) Chamado à Aventura. É o problema, o desafio, um objetivo que forçará nosso herói a iniciar sua jornada. Seja intencional, por acaso ou mãos do destino, é algo que tira nosso herói do seu mundo chatinho.
Mas o herói, que até então não é herói coisa nenhuma, irá vacilar. Afinal, quem não sente medo diante das novidades, não é? É então que acontece a (3) Recusa ao Chamado; o famoso fazer doce, ou consumir-se em insegurança, que é o nosso herói sendo medroso e negando a aventura que se insinua - isso até que algo ou alguém o force a encarar de vez o desafio que surge à sua frente.
Não raro, é nessa hora que aparece o (4) Mentor. Tipicamente, um velho ou uma velha, seja ele verdinho e de um metro de altura ou não, com todo o ar de sabedoria, e que irá conduzir nosso herói. O mentor tem dupla importância: prepara seu pupilo mas também o empurra até a jornada tirando dele o medo que o deixava em inércia.
Nessa parte da história é que geralmente se chega na (5) Travessia do Primeiro Limiar. É o momento decisivo do início da jornada. É aqui que o herói aceita o seu papel e a sua responsabilidade e decide começar sua aventura, seja por um ato simbólico ou mesmo literal, tipo atravessar um portal ou algo que o valha – ou embarcar numa nave e viajar por aí por planetas nunca antes visitados.
Isto o conduz ao descobrimento de um novo mundo, aquele mundo especial diferente do mundo cotidiano, um mundo em que existem mistérios e magias, mesmo que sintetizados em divertidíssimos sabres de luz. Vai ser um lugar para (6) Testes, Aliados e Inimigos, todos colaborando de um jeito ou de outro para que o herói entenda como é que as coisas funcionam nesse novo mundo que está descobrindo – comumente, aquela parte da história que nosso herói se mete em confusão por não entender como as coisas funcionam nesse novo mundo, tipo arranjar uma briga de bar com um bandidão intergaláctico, ou então acabar precisando da ajuda de alguém deste mundo novo, como de um piloto espacial muito canastrão acompanhado por uma urrante bola de pelos.
Muito da história acontece aqui, nessa sexta etapa, geralmente a maior parte da história. Seu abandono vem através da (7) Aproximação com a Caverna Oculta, que é só um nome pomposo para aquilo que todos já vimos nas histórias que mais gostamos: o lugar que antecede o grande enfrentamento que o herói irá realizar. Sentirá medo inédito, hesitará novamente, terá de bolar planos infalíveis, realizar preparativos, pensar uma estratégia para destruir a Estrela da Morte, mas é preciso seguir adiante na perseguição do seu objetivo.
E então vem a (8) Provação, o momento de vida ou morte. É quando o herói se vê face a face com o que mais lhe mete medo, o final boss, e é quando nós, que acompanhamos a história, prendemos a respiração, seguramos a piscada, e duvidamos: o herói sobreviverá? O objetivo será alcançado ou não? Luke conseguirá atingir o alvo e destruir a Estrela da Morte antes que Darth Vader dispare? A provação é fundamental pois, através dela, uma vez superada, o herói renasce em nova condição.
Então é chegada a hora da (9) Recompensa: o herói conseguiu o que buscava, cumpriu o objetivo, resgatou a princesa, salvou o mundo, destruiu a Estrela da Morte. Mas o (10) Caminho de Volta pode não ser simples; as ações executadas até o momento geram consequências. Uma luta final com um vilão que se julgava morto, ou talvez a escapatória alucinada de base que está prestes a explodir; algo ainda precisa acontecer antes do retorno heroico ao mundo comum. É aquela parte da história que despeja uma dose extra de ação e tensão pois você já esperava pelo final feliz.
Aqui pode vir um grande apelo da história, que é o herói e a sua (11) Ressurreição, que as vezes é literal – em quantas histórias o herói estava morto mas então, subitamente, por algum artifício sempre criativo, volta à vida? É como que o exame final do herói, sua última prova na qual precisa demonstrar que aprendeu a lição, o momento que deixará claro que nosso herói atingiu uma transformação inquestionável, que voltou de uma morte, mesmo que simbólica, e a vida será diferente a partir dali – tipo se saber possuidor da Força.
Cumpridas todas estas etapas, resta somente o (12) Retorno com o Elixir, que é a volta, vitoriosa, do herói ao seu mundo comum. Mas é preciso ter uma conquista como que para deixar claro que sua jornada foi completa e bem sucedida. Pode ser um aprendizado, um item especial, ou simplesmente o reconhecimento da experiência que adquiriu durante a sua jornada.
A depender do acervo cinematográfico, é certo que o leitor mais atento reconheceu essas etapas em diversos filmes. Não só em Star Wars, como Harry Potter, O Senhor do Anéis, Matrix, O Poderoso Chefão, e inclusive algumas animações, como Shrek.
Claro, as etapas não funcionam como uma regra invariável ou um roteiro burramente fixo; como dito antes, é algo adaptável e plástico, que ora se estende aqui, ora economiza ali, pula daqui para lá, mas a ideia é a mesma: separação, iniciação e retorno.
Até aqui temos, se muito, uma macetinho para roteiristas e escritores, tipo um truquezinho para você bolar a história que vai te deixar rico e famoso, algo em que George Lucas foi exemplo concreto. Resta explicar por que isso não seria um simples macete e o que é que se esconde atrás desse truque que, afinal, fez Star Wars ser o que é.
[Todos somos Lukes.]
A Jornada do Herói representa, portanto, um padrão narrativo. É um jeito de contar uma história que existe desde sempre.
O fundamento teórico por detrás disso está dado numa perspectiva estruturalista, ou seja, é como se houvesse uma estrutura mental inata aos humanos, na qual está incluída esse esqueminha do herói que passa por separação-iniciação-retorno.
Sim, a teoria é grandiloquente assim.
Campbell, diante da descoberta desse padrão narrativo, e na tentativa de melhor explicá-lo, usou então de dois conceitos: arquétipos e inconsciente coletivo.
São dois conceitos cunhados por um outro estudioso, o pai da psicologia analítica, Carl Jung (1875-1961).
De acordo com Jung, nós, humanidade, possuímos como que ideias elementares, melhor chamadas de arquétipos, que são coisas que transparecem em nossos sonhos, por exemplo. Ou seja, temos esse chão comum, uma base mental dada em todos nós, da qual brotam ideias elementares que, a depender do contexto, encontrarão uma expressão assim ou assado, mas que são sempre a mesma ideia independentemente da pessoa – você, que acorda e dorme saturado por conexões WiFi, e um nativo de alguma isolada ilha do oceano pacífico, sim, partilham as mesmas ideias elementares.
Daí que podemos falar de um inconsciente coletivo, ou seja, esse local de onde espontaneamente vêm os arquétipos (nossas ideias elementares).
Louco, não?
Supondo, pois, que a Jornada do Herói tenha esse pezinho dado num inconsciente coletivo, e que portanto está expressando arquétipos profundamente encrustados em nós, ora, não é a toa que as histórias construídas conforme a Jornada do Herói façam tanto sucesso!
Independentemente dos personagens, do argumento, de quem morre ou do que é que está para ser salvo, a Jornada do Herói conversa com algo muito comum a todos nós. É como se fosse uma linguagem universalmente compreendida.
Existem essas figuras, como a do mentor, ou a do vilão, com as quais estabelecemos relações e que todos nós sabemos reconhecer essas relações pois estão dadas em nós mesmos. Existem essas dinâmicas, como a de sair do mundo comum, ou a de enfrentar uma grande provação, que todos nós sabemos dos sentimentos que brotam nessas situações pois todos já as vivemos.
Trocando em miúdos, e levando isto para a galáxia muito, muito distante, Star Wars, essa jornada do herói cinematográfica,e staria trazendo algumas questões que todos nós conseguimos decodificar e por isso é que nos identificamos tanto com a história.
Talvez a maior decodificação/identificação de todas esteja no dilema moral central da saga, que é quanto à Força: ir ou não para o lado negro?
George Lucas disse ter sintetizado na Força algumas grandes questões que perpassam todas as religiões. E não é difícil identificar isso. Na verdade, durante os filmes somos bombardeados com falas sobre a Força que são falas religiosamente genéricas, que poderiam ser colocadas dentro do discurso de muitos padres, pastores, monges, etc.
Como Yoda alerta, o lado negro oferece um poder que é rápido e fácil. E por isso sedutor. Quer dizer, o lago negro tem os stormtroopers e a Estrela da Morte; o lado iluminado, bem, tem os Ewoks... Independente da roupagem moral que adotemos, cristã, budista ou seja qual for, o mal é sempre tentador assim.
Já o lado iluminado é o lado da longa dedicação, da tranquilidade obtida com muito esforço, do clássico perdoar sem ressentimentos, da superação obstinada dos desejos e, portanto, de todo e qualquer medo – como aceitar que as pessoas que amamos morrem, algo que Anakin teve um ou dois probleminhas em aceitar.
O dilema moral que a Força invoca é o dilema da eterna luta entre o bem e o mal que nós, crentes ou não, já sentimos em algum nível, mesmo que seja naquela dúvida quanto a se vingar ou não do nosso irmão só porque ele dedurou a gente pra nossa mãe.
No nosso dia a dia, com maior ou menor dramaticidade, nós entendemos esse dilema moral mesmo que nunca tenhamos assistido Star Wars. Somos Jedis e Siths, sem saber. Há sempre a possibilidade de escolher pelo ladro negro da força, ou seja lá como você chame a escolha entre o bem e o mal, e por isso, de acordo com a teoria que sustenta a Jornada do Herói, nos identificamos tanto com a história de Luke – ou com a do Vader, né.
Aliás, enquanto a trilogia antiga explora o dilema moral pela face do bem (isto é, a trajetória do herói Luke até sua transformação benigna), a trilogia mais recente explora a outra face do dilema moral, complementar à primeira, que é a do lado do mal (ou seja, como é que o herói Anakin corrompeu-se e cedeu às tentações do lado sombrio). E ambas as trilogias, deixemos claro, usando do esquema separação-iniciação-retorno.
Enquanto isso, a pergunta-isca que nos pega por dentro, é sobre quem nunca cedeu ou ficou profundamente tentado a ceder ao lado negro da Força.
[Verdade ou não, é o que é.]
Teorias grandiloquentes a parte, a Jornada do Herói ressalta algo importante, e aí sim no âmbito mais sociológico – que até agora ia meio perdido entre explicações antropológicas e psicológicas.
É preciso quebrar a crítica vazia. Há a tendência em achar que produtos culturais que fazem enorme sucesso de público, como alguns filmes e livros, são pequenas lavagens cerebrais. Como se nós, a audiência, fôssemos bovinos passivos consumindo lixo sem perceber – perceberíamos, se muito, os efeitos especiais de última geração.
A Jornada do Herói levanta a questão recepção: o que faz com que as pessoas gostem mais de uma história do que de outras? E a resposta pode estar não na supervalorizada indústria cultural (e seu braço hollywoodiano), mas sim em nós, pessoas com subjetividade, que mobilizam recursos diversos que as fazem gostar mais ou menos de um filme ou livro.
Se a razão das pessoas gostarem ou não de uma história é dada em estruturas enraizadas em toda a humanidade, cabe discussão. Mas o fato é que George Lucas explorou conscientemente um padrão narrativo que é, hoje, forte e eficaz como se tivesse mesmo um respaldo em nossa estrutura mental com seus arquétipos e inconsciente coletivo.
Já estamos tão acostumado com a Jornada do Herói que filmes que não seguem esse macetinho nos parecem chatos e entendiantes. E já estamos tão acostumados, que a indústria hollywoodiana, e aqui aquela crítica vazia torna-se mais preenchida, vem explorando ao máximo as histórias passíveis de virarem jornadas: cria uma penca de heróis que saem de seus mundos comuns, encontram mentores, e embarcam em aventuras de transformação.
(Para mais explicações sociológicas, acesse SociologiaExplica.com)