Uma carta de Ramon

Recebi hoje à tarde uma carta do meu amigo Ramon que me deixou muito preocupado. É um pouco confusa, mas vou transcrevê-la na íntegra, do jeito que ele escreveu:

“Segunda-feira brava? Não, brava não; cruel. Segunda-feira é o meu terror, minha angústia; não quero nem fazer barba, nem escovar os dentes, pentear o cabelo, nada. Por que tenho que fazer coisas? Não quero fazer nada, só ficar quieto, olhando para o céu, para as nuvens, para o teto. Parece que vai chover; as nuvens estão carregadas; o vento é de chuva, mas não chove. É como minha alma agora: pesada, escura, fria, mas não chove: a coisa não passa; meu coração bate como se me comesse por dentro, cada vez mais fundo. Não quero nada. Só paz. Que ninguém me amole; que ninguém me convide para nada, nem para um café. Que não esperem nada de mim, porque eu não tenho nada para dar; estou frio, congelado por dentro, minha crosta mais ou menos risonha, mais ou menos simpática, mais ou menos ativa, é só aparência, é minha dura luta para me manter de pé, cumprindo o que precisa ser cumprido, a duras penas, duras, duras, duras – como é difícil me manter de pé! Quero me livrar dessa corrente, tirar meu corpo da tomada, desligá-lo de vez, apagar tudo, TUDO! – para descansar... Não aguento mais manter essa casca ativa, tirá-la da cama carregando esse peso frio dentro de mim para lá e para cá, forçando-o a ir aonde ele não quer – sua tendência é sempre ficar onde está e escorrer para o chão, misturar-se ao solo, à natureza, se diluir no nada; mas eu o forço a se levantar, a ir e voltar, a pensar, a falar – como é difícil! Até quando vou conseguir manter-me de pé, carregar essa coisa para lá e para cá? Não sei. É necessário isso? Eu preciso passar por isso? Devo procurar um médico? Qual? Onde? Não sei. Estou mal. Não quero fazer nada, não quero lutar; quero só não sair, fechar-me aqui, sozinho, deixar o cansaço me tomar, e descansar, dormir... Há muito tempo não durmo bem, não consigo; é tudo tão triste, tão frio: o futuro... Que futuro? Até quando vou ter que viver assim, penando, por amor à minha família, preocupado com o futuro dela? E o meu futuro? O que esperar do futuro para mim? Quando serei livre?... Lá fora o vento anuncia uma chuva que não vem – uma chuva que traria um pouco de alívio, clarearia as coisas, pelo menos por um tempo. No meu ser, também, é só breu e frio, com um pouco de vento; mas não chove, não chove... Agora, dentro de mim está tudo muito quieto, mas sinto o peso da coisa para baixo, o vetor da força é para baixo, impiedosamente para baixo, e é indiferente a tudo, ao mundo, ao universo, à dor dos homens, à minha dor – quer apenas a composição da coisa com os elementos, com o chão, com a lama; e eu preciso lutar contra essa força, mas não consigo; preciso de ajuda... Preciso fazer a barba, concentrar o pouco de força que eu tenho na crosta do meu ser e me carregar até o banheiro e fazer a barba, mas não consigo – não me importo com nada, tudo me é indiferente: a tragédia em Mariana, a tragédia em Paris, a corrupção, a Dilma; mas ao mesmo tempo sinto que qualquer coisinha por aqui pode me derrubar: um problema no banco, uma doença na família, uma discussão – qualquer coisa pode acabar comigo. Viver me tira o sono (acho que foi a Clarice que escreveu isso). Viver me tira tudo, consome meu combustível e não repõe; estou me consumindo, estou acabando aos poucos; transformo-me em sujeira, em pó de cisco, e a qualquer momento posso cair, seco, desarmado, acabado; e alguém pode me varrer – a vida pode me varrer... Estou mal... Não sei o que fazer.”

Assim que terminei de ler a carta, fui correndo até a casa de Ramon. Ele estava dormindo, dopado. Sua mulher estava preocupada. Confisquei os dois livros que ele estava lendo (perigosíssimos!): 'Os Demônios', de Dostoievski, e 'Mrs. Dalloway', de Virginia Woolf. Liguei para alguns amigos, descobri o contato de um psiquiatra muito bom em Belo Horizonte e marquei uma consulta. Vou ajudar meu amigo. Eu já passei por isso, sei como é difícil, não vou deixar que ele se entregue. Sua família está comigo. Não vamos perdê-lo.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 18/11/2015
Código do texto: T5452370
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