Um Copo Francês
O frio avança pelas ruas e pelos ossos, marcando sua presença com calafrios vertebrais ondulatórios. O céu cinza anuncia o seu retorno inesperadamente aguardado, convidando a quem quiser a fechar as janelas e os braços. No apartamento temporal, luzes frias e artificiais enganam os sentidos, desviando os olhos do Astro Rei e martelando-os na tela frágil de uma máquina sem alma. Para eternizar o calor da alma no corpo, uma graspa límpida acomoda-se no pequeno copo francês du Chat Noir. Um gole basta por uma vida inteira de calor, e os dedos rachados de giz voltam a empunhar a caneta com firmeza cirúrgica. Em outra mão, fios da barba branca são acariciados, modelando-os ao queixo com carinho materno e sincronizado aos pensamentos inspiratórios destas palavras. Um verdadeiro ritual não-consagrado, mas funcional, sempre repetido como um vício drogadisso. A noite cai, enfim, percebida no instante de descuido da luz fria, e o copo pela metade denuncia a sobriedade do escritor, aflito por mais relampejos de inspiração. Quem sabe outro gole, e além de espantar o frio teimoso, palavras não voltem a se apaixonarem umas pelas outras, em abraços de declarações "agathicas" e machadianas?
Mais um gole e vira-se a página do caderno de rascunhos. O calor e a empolgação parecem possuir o estagiário das letras de maneira a rasurar suas palavras no papel áspero. O tempo agora perde a noção dele próprio, pedindo auxílio a qualquer um que o perceba melhor. O Sol foge tímido pelo crepúsculo vespertino, convidando sua prima, a Lua, a herdar seu trono celeste. Então a noite chega acompanhada pelo seu súdito preferido, o frio, que é alheio a tudo e a todos, não tendo vergonha de sua fama impessoal. O relógio volta a avisar ao tempo do seu trabalho e este dá consciência ao escritor que seu copo, outrora cheio, agora jaz na presença do vazio, tanto de álcool como de tristeza. Será que este é o sinal que algo surgira pelas sinapses nervosamente excitadas deste aprendiz? Mais uma graspa, por favor!