Meu querido diário, descobri que sou um salafrário

Fui ao médico me queixar de dores no peito, mal estar e ânsia de vômito. O doutor examinou tudo, mediu a pressão, bateu bombo na barriga, escutou a caixa preta, buliu no armazém de catarro e decretou: “é emocional”.

Na minha cabeça eu faço e desfaço as contas de minhas neuras. Não acredito ainda que sou um sujeito neurastênico. Vou para a esquina e fico esperando minha sombra que vem, manquitolando, indecisa como sempre. A golpes de hesitação, explode em mim um raio de luz negra nas bordas do meu subconsciente. Fica aquela impressão de que ainda vivo sob a bandeira do medo, da raiva e da descompaixão.

O que fazer? Buscar tratamentos holísticos? Remar para as bordas de outro mar de serenidade, depois das águas turvas de sessenta anos de sol posto e sepulcro caiado? Minhas magras razões espreitam pela janela do ônibus fantasma que me leva ao abaixamento. Cada um carrega sua tragédia escondida, uma estranha obrigação de dedicar parte de sua vida aos pequenos, idiotas e humilhantes embates contra tristes figuras que nem valeriam um olhar de desprezo.

Na rua, o silêncio dos nada inocentes. Na esquina, continuo a esperar minha sombra meio martirizada, refletindo esses instintos cruéis que a gente teima em conservar, apesar da dor cruciante no peito e o desejo de golfo desopressor.

Agora sei que os meus opostos estão no mesmo canto do ringue que eu. Não somos opositores, mas escravos e mártires da mesma hostilidade. Por força dos meus sessenta anos, obrigo-me a relevar e absolver essa canalha que me olha com ar de ratos nervosos, emboscados na mesma esquina. Pelo pouco desamor que se fez tanto tóxico nas minhas entranhas, levanto um brinde peçonhento a essas tristes figuras que, como eu, são apenas resíduos amargos de uma humanidade sem destino e sem futuro.

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Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 12/11/2015
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