Crônica de um ex-zagueiro

Lembro-me que tomei a decisão de jogar na defesa por conta de uma imprudência: eu jogava no ataque, era driblador, mas usava o recurso com irresponsabilidade. Em um campeonato colegial de futebol de salão, quando minha escola vencia por 3x2, numa saída de jogo, tentei fazê-la fintando o marcador ao invés de passar a bola, e o resultado da atitude não foi dos melhores. O adversário tomou a bola e afundou as redes do goleiro da minha equipe. Nossa escola perdeu a chance de vencer o jogo, que terminou empatado. Não saíam da minha cabeça as broncas do meu goleiro e do professor de Educação Física que comandava o time do colégio.

A partir daí, resolvi que iria jogar feio, para não tomar mais broncas. Nascia um zagueiro tecnicamente razoável, que marcava bem e possuía boa velocidade. Para ajudar, ainda fazia meus golzinhos de cabeça no futebol de campo. Adaptei-me a uma nova realidade, que de certa forma, deu certo. Por isso, tomei a liberdade de escrever esta crônica para aqueles que comemoram uma bola roubada ou a interceptação de um gol como se fossem tentos marcados.

Primeiramente, zagueiro não pode ter o mínimo pudor. Sim, tem que ser imoral, saber que às vezes é preciso mandar a bola para o mato sem qualquer vergonha de ter feito uma jogada tosca. A missão do defensor é defender, e não dar espetáculo. Se assim fosse, o sujeito seria meia-armador ou atacante, e não zagueiro. Outra coisa é procurar não ser simpático dentro do campo. Defensor que é defensor faz cara feia, ainda que esteja de bom humor. É preciso estar sempre alertando os companheiros de equipe com relação ao posicionamento, e, além disso, não ficar sorrindo para atacante adversário. Digo isso porque a intimidação faz parte de uma estratégia subconsciente de tentar impor respeito. Sim, porque se você sorri para o atacante, na próxima jogada ele te dá um chapéu e sai tirando onda na sua cara. E zagueiro que se preze, porta-se como xerife, não como boa praça.

Ainda como parte da estratégia fisionômica de não ser simpático, um ritual bastante útil é o de usar barba nos dias de jogo. Pode parecer uma dica estranha, mas a barba transmite seriedade e virilidade, imprescindíveis para a posição. É preciso entender que o defensor precisa estar mais para Jackson Antunes ou José Mayer do que para Fábio Assunção. Se não fui didático nesta dica, tentarei ser mais enfático: Zagueiro encena “Tropa de Elite”, não “Malhação”. Se você entendeu isso, bem, se não entendeu, amém. Vai ser driblado e desmoralizado pelos atacantes.

Se precisar derrubar o adversário, faça-o com moderação, sem contundi-lo. Fair play é necessário, mas é preciso ter o feeling para entender que as faltas, às vezes, também são. O cartão amarelo tem que ser evitado, mas existem momentos em que é preciso este sacrifício em nome da defesa da própria meta.

Entenda que é comum sujar o uniforme, tanto com suor quanto com terra. É que para aplicar os inevitáveis “carrinhos” é fundamental manchar o calção com barro, porque nos campos de várzea, a relva é vinte por cento verde e oitenta por cento marrom. Além disso, você é zagueiro, não garoto propaganda de comerciais de sabões em pó.

Imponha-se, mostre autoridade, encare um drible tomado como algo inadmissível, evitando o próximo com obsessão. Ao fim do jogo, tenha a certeza de ter honrado as camisas 3 ou 4 da sua equipe com seriedade. Deixe as gracinhas, os malabarismos e as jogadas bonitas para os companheiros que vestem 7, 9, 11, ou principalmente, 10. Eles nasceram para isso, você não. Isso não é demérito, muito pelo contrário: é uma questão de cumprir missões em trabalho de equipe. Para que o pianista faça um bom concerto, alguém tem que carregar o piano até o palco. Zagueiros e volantes são os carregadores de piano, que, ainda sem tanta plasticidade, contribuem para o espetáculo. É isso.

* O Eldoradense