Pode falar, Osvaldo

Sábado à tarde. Calor insuportável. Ramon acaba de se despedir da esposa e dos filhos, que foram à festinha de três anos do Gabriel, sobrinho dele, num salão de festas sem ar condicionado, apertado e cheio de manchas de infiltração nas paredes. Só de pensar nisso, nas dezenas de mesas enfeitadas de azul e branco (o pai do menino é cruzeirense), nas músicas irritantes e nos pratinhos de coxinha, empadinha e canapé, servidos com coca e guaraná, Ramon estremece todo, como se começasse a ter um surto de síndrome do pânico (coisa que há mais de um ano ele não tem, graças à terapia e aos remédios que toma rigorosamente).

Pelos seus cálculos, ele tem mais ou menos três horas de solidão, que usará para assistir a um filme, talvez um Hitchcock dos anos 50, ou um Terror dos 80 (daqueles bem sangrentos), e depois navegar um pouco pela internet.

Decide pelo Hitchcock. Liga o computador, ajeita a poltrona em frente à tela, tira a roupa (fica só de cueca) e liga o ar condicionado, ajustando-o para 17 graus. Vai à cozinha, pega uma taça de vinho branco gelado, senta-se na poltrona e põe o filme para rodar.

Cinco minutos depois o interfone toca. Ramon aperta o pause e vai à janela discretamente ver quem é. É o Osvaldo, seu colega de trabalho. “Não pode ser”, diz Ramon. “O que esse cara veio fazer aqui?”. Ramon espera que ele desista e vá embora. Mas ele não desiste. Toca de novo, dessa vez demorando mais com o dedo no botão. “Não vou atender”, diz Ramon, decidido. “Para todos os efeitos eu não estou aqui”. Mas Osvaldo insiste: toca mais uma vez, duas, três vezes. Depois anda pelo passeio, balançando os braços, inquieto. Ramon está escondido atrás da persiana e o vê andando para lá e para cá, coçando o queixo, olhando para as janelas, para a garagem, para o céu.

Ramon volta para a poltrona e espera um minuto. Quando liga de novo o filme, seu celular toca. É o Osvaldo. “Filho de uma égua”, diz Ramon baixinho, “não vai me deixar em paz”. Olha pela janela e vê o colega sentado no passeio, com o celular no ouvido. Ramon não atende.

“E se for importante?”, pergunta-se Ramon um minuto depois, pensativo. Osvaldo continua lá, a cabeça entre as pernas, o rosto todo molhado de suor, o celular no chão. Ramon interrompe o filme, veste uma bermuda e liga para o colega. “Ei, Osvaldo, você me ligou?”. “Sim”, ele responde, “é que, que... é que...”, ele gagueja, não consegue falar; Ramon o vê pela fresta da persiana, ele está de pé, encostado na grade do portão, tremendo. Ramon diz: “Pode falar, Osvaldo, está tudo bem”. Osvaldo continua: “Estou na porta da sua casa, preciso conversar...”.

Ramon odeia visitas, ainda mais num sábado em que recebeu da esposa e dos filhos um ‘vale tarde sozinho em casa’; mas mesmo assim ele decide não inventar nenhuma desculpa e chama o Osvaldo para entrar.

Osvaldo tem 37 anos, é casado, tem três filhos e está cheio de problemas: depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo, vontade de largar o emprego e abrir uma livraria, conhecer a Europa (mas tem medo de arriscar e ousar, por causa das parcelas do carro, do apartamento, da escola dos filhos, dos planos de saúde, da viagem para o nordeste, etc.). Ele gosta de Ramon, identifica-se com ele (ambos são casmurros, estranhos, preferem ficar sozinhos), por isso decidiu procurá-lo.

Saem. Caminham pelo bairro. Vão a um bar, tomam uma cerveja, comem qualquer coisa, conversam.

O tempo passa e os dois continuam se encontrando para conversar. Hoje Osvaldo está melhor (foi a um psiquiatra, está tomando Klonopin, Valium e Xanax, e decidiu que vai à Europa no ano que vem).

Ramon não se arrepende do que fez. Perdeu uma tarde de sábado sozinho em casa, mas ganhou um amigo para o resto da vida.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 11/11/2015
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