É MELHOR SOZINHO...

O texto a seguir é continuação do anterior e foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

É MELHOR SOZINHO...

"Raro unus, numquam duo, semper tres" ( Raramente (andar) sozinho, nunca em dois, sempre em três) era o que rezava uma norma de conduta. Não andar sozinho, a fim de não se tornar anti-social. Nunca andar em dois, a fim de evitar malfazeres que dessem azo a maldizeres. Mas diz um ditado que é melhor sozinho que mal-acompanhado. Por isso, mesmo conhecendo tal norma, eu preferia andar sozinho, porque embora não fosse mais nenhum moleque, pois já estava nos meus dezenove anos, eu ainda não tinha deixado de todo as minhas molecagens de garoto e preferia fazê-las sozinho, a fim de não correr o perigo de ser dedurado ou de envolver os outros.

Fazia um bom tempo que eu andava doido pra descobrir o que era guardado numa sala do térreo que estava sempre de porta chaveada e janelas trancadas. Cada vez que passava por aquela porta, sentia um cheirinho saudoso... Um dia me enchi de coragem e perguntei pro Irmão Luís, que tinha sua sala de trabalho ali bem perto.

— Ah, ali é a adega — revelou-me ele meio sorrindo. — O Padre Bernardo anda fazendo umas experiências malucas. Quer fazer vinho de laranja — completou.

— Huuuum! Por isso é que vem aquele cheirinho...

Padre Bernardo era o Reitor, o mesmo que nos castigou no caso das melancias. Embora meu paladar já naquele tempo não se afinasse muito bem com o sabor das melancias, o senso de solidariedade com a turma injustiçada fazia-me sentir azedo com ele.

Falando em azedo, cada vez que eu passava pela dita porta, aquele saudoso cheirinho de vinho de missa dos tempos de Rio Negrinho me enchia as narinas. Mas a porta estava sempre chaveada.

“Ah, se eu descubro uma chave que abra essa porta!...”, ameaçava eu.

Tudo quanto é chave que encontrava noutras portas eu levava rapidinho e tentava abrir aquela, mas não tinha jeito... E acabei desistindo.

Dias depois, porém, sem tê-la visto, chutei uma baita chave caída no patamar superior de uma das escadarias. Naquele tempo a gente esbanjava energia e andava sempre correndo. Com o chute forte, a chave foi saltando os degraus e parou lá embaixo. Eu corri, juntei, analisei-a e vi que era diferente de todas as outras. Com o coração aos pulos, corri à bendita porta e, oh maravilha! Girou na fechadura. Cheguei a duvidar.

Ao abrir a porta, o cheiro de azedo me encheu as narinas. Entrei e, por precaução, chaveei-a por dentro e me pus a investigar o conteúdo da adega. Caixas e mais caixas de garrafas, umas cheias, outras vazias, amontoavam-se quase até o teto. Numa prateleira enorme em toda a extensão da parede, outras tantas garrafas deitadas.

“Deve ser vinho, mas não é o que eu quero. Vinho de missa é guardado em barril. Pelo menos lá em Rio Negrinho era”, pensei.

Num trecho da prateleira havia algumas dúzias de garrafas separadas das demais, e num papel estava escrito em bons garranchos: Vinho de Laranja. “’Tá aqui o vinho do Padre Bernardo! É deste que eu vou provar primeiro”, decidi, passando a mão numa garrafa. Saí dali de fininho, chaveei a porta e me arranquei pra gruta, lá pro meu esconderijo, levando a chave comigo. Lá, em cumplicidade com a santa, que havia-me prometido guardar o meu segredo, abri a garrafa e bebi um gole pra experimentar a coisa. Não gostei. Parecia vinagre. Tornei a fechá-la com a mesma rolha, refiz o lacre ao calor de uma vela acesa e guardei-a pra devolvê-la ao depósito no dia seguinte.

Na afobação da primeira vez, eu me apressei e nem reparei no melhor. Atrás das pilhas de caixas estava o barril que eu tanto queria encontrar. Depressinha peguei uma garrafa vazia de uma das caixas, enchi-a até o meio e safei-me dali.

Os outros que se divertissem lá no rio, pescando, que eu estava noutra! Agora sim, eu tinha vinho pra uma semana inteira! Lá no meu esconderijo, embaixo daquelas pedras e das árvores, era fresquinho, e o vinho se conservaria mais tempo sem avinagrar.

Era o que eu pensava. Mas volta e meia eu ia dar uma bicadinha, e de gole em gole no fim do dia seguinte eu já estava apojando a garrafa. O jeito era ir de novo ao barril, economizar o líquido precioso e “não ir com tanta sede ao pote”. Foi o que eu fiz. A segunda metade da garrafa durou até mais de uma semana.

Lá pela quarta semana eu estava lá no depósito tirando leite do barril novamente, e de repente ouço ruído na fechadura da porta seguido de um xingamento.

— Ô diacho, eu trouxe a chave trocada!

Pela voz, reconheci que era o Padre Reitor. Com a minha chave enfiada pelo lado de dentro da fechadura, a dele não pôde entrar e, achando que tivesse a chave trocada, ele tratou de subir. Até ele ir ao terceiro andar, onde ficava o quatro dele, e descer, deu tempo de eu me pôr a salvo com mais meia garrafa de vinho. Mas foi a última. O cagaço foi grande. Tantas vezes vai o rato ao moinho que um dia lá deixa o focinho diz o ditado. Por pouco eu não perdi o meu.

Convite: Se você gostou desta minha crônica, do meu estilo de narração, leia as anteriores, mas em ordem cronológica, começando pelas primeiras que foram postadas.