Dona Flor
Escondida em meio aos caos da grande São Paulo, estava dona Flor. Não se sabe o real nome dela, mas ela tinha uma flor, de plástico, vermelha - um pouco suja - atrás da orelha. O vermelho realçava em meio a sujeira em sua pele e roupa, porém, dona Flor continuava imperceptível. O barulho dos carros reprimia sua voz, e a montoeira de gente, que passava como se estivessem em um grande formigueiro, tapava aquele pequeno ser, com pouco mais de um e cinquenta de altura.
Seus cabelos eram brancos acinzentados, da cor da poeira do asfalto. Seu rosto expressava o quão pesada a vida pode ser. Sua casa ficava em um terreno abandonado. Era de madeira, e não gostava dos períodos chuvosos, mas tinha uma delicadeza que só dona Flor sabia dar. Pelas janelas, cobertas por pedaços de papelão, exalava poesia. Poesia, bem lá de dentro. Por incrível que pareça, as paredes eram cobertas por trechos, grandes e pequenos, de Shakespeare a Bukowski. Recortes de revistas, frases escritas por sua mão cansada e sofrida.
Ela tinha alguns livros, e os recitava diariamente. Em sua janela, ou na calçada, não dava para saber se dona Flor, realmente, lia os versos, ou se os inventava. Mas, ali ela ficava. Sua casa era simples, sua vida era simples, dava pra sentir a pobreza pelos ares. Contudo, seu sorriso dos lábios não saía, tinha uma quantidade impressionante de lindas poesias, sua vida era um verso que não foi lido, mas que nem por isso perdia seu encanto e beleza.
Certo dia, tomei coragem, e fui até ela - de perto, ela parecia ainda mais bela. As rugas ao redor de seus olhos aumentavam quando ela sorria. Eu não sabia sua idade correta, mas, com certeza, muita coisa ela havia vivido. Se aproximou de mim, com um livro em sua mãos, e disse: Em que posso ajudar, cara amiga?
Eu não sabia, ao certo, o que dizer. Doçura exalava de seus olhos. Como ninguém a viu antes? E sua família, onde estaria?
Dona Flor apenas sorria, "não se assuste com a vida, minha filha". Voltou a recitar os versos do livro que em suas mãos estava, agora olhando para mim. Percebi que ela lia Laurence Sterne: "A solidão é a mãe da sabedoria!", deu-me uma piscadela, eu a entendia. Sua solidão a tornava sábia, e mesmo que despercebida, de alguma forma, ela bem vivia.
- Precisa de alguma coisa para comer, senhora?
"Tenho pouco, mas dá para sobreviver, só me faça companhia em alguns dias." E, novamente, ela sorria. A abracei e disse que voltaria, mas, nos olhos dela a desesperança me dizia que naquilo ela não cria. Mas, sempre que podia, ali estava eu para ouvir tudo que de seus lábios saía.
Às vezes, eu não tinha tempo de ali estar, porém, isso não a impedia, quando voltava meus olhos para ela, em meio do caos, despercebida e sozinha, ela continuava a sorrir, lançando versos ao vento, ou pra quem se atrevesse a parar por ali.