A SOCIOPATIA DO DESRESPEITO

Pelas perenes catracas do mundo...

Pela calçada ele vinha sozinho e bem devagar, na legitimidade da sua cidadania, vencendo a sua dificuldade física notória na caminhada, naquele exercício pleno do seu direito de “ir, vir e adentrar” aquela instituição pública financeira, provavelmente pela data, para receber o pagamento do seu benefício social, o da aposentadoria.

Vagarosamente subiu as escadas sem ajuda, degrau por degrau, digno de si, apoiado numa elegante bengala de três pontos, adornada na ponta com um desenho metalizado em alto relevo e ali, à desafiadora entrada da porta do banco, parou para encenar um ato tão corriqueiro aqui entre nós: o de conseguir vencer a barreira das portas giratórias, as que todos dizem ser necessárias e super eficazes contra os assaltos nas instituições financeiras.

São eficazes sim, menos contra os bandidos discretos, aqueles que tudo levam aos ares na calada das noites.

Assim que venceu a escadaria, cansado e resfolegante, encostou na porta giratória e ouviu o primeiro apito seguido daquela gravação irritante e desrespeitosa: “caro cliente, por favor, retorne à frente da faixa amarela e tente de novo”.

Submissamente, ele tentou. Porque está acostumado a tentar...sempre.

Tentou pela segunda, pela terceira, pela quarta, quinta vez, até que um segurança super motivado e sensibilizado(com a proteção do banco) lhe argumentou friamente assim:

”senhor, encoste a bengala aqui na parede e tente entrar novamente.”

Ele obedeceu e tentou mais uma vez.

Com dificuldade, então se livrou da bengala num equilíbrio de quase malabarista, a passos curtos se ancorou na porta giratória que imediatamente lhe abriu a ponto de lhe desequilibrar e quase levá-lo ao chão.

Dentro da instituição o outro desafio: que alguém lhe passasse a bengala para que pudesse continuar em pé lá dentro.

Não, o conhecimento e a presteza impecáveis do "segurança" falaram mais alto.

Conclusão científica: a bengala não poderia adentrar a instituição porque era ela a perigosa suspeita invasora, visto que o alarme havia tocado para ela.

Não houve absolutamente ninguém hierárquico do “pequeno poder reinante entre nós” que lhe facilitasse a vida garantida pela lei do estatuto do idoso, naquele caso, um idoso bem fragilizado.

Então, numa resignação de chocar o ser mais frio desse mundo, no silêncio do seu drama cidadão invisível ao mundo, retornou a porta giratória sentido saída, se ancorou no vidro, venceu o perigoso labirinto, retomou a sua bengala inofensiva e heróica ali encostada na parede, desceu as escadas sozinho e se foi embora, depois de flagrantemente desistir do que iria fazer na instituição.

E a vida continuou...lá fora. Continuou no silêncio daquilo que ninguém vê porque nã há tempo a se gastar com o que não é da nossa conta.

Ou melhor, continuou a sobrevida desrespeitosa nessa sociedade sociopata, essa da qual todos fazemos parte, em atos de cenas corriqueiras que já nos habituamos a encenar e assistir por aqui.

A comédia teatral no protagonismo do nosso “autismo cidadão”.