Lendo "Os Demônios"

De novo me aventuro em Dostoievski, o grande escritor russo, agora lendo "Os Demônios", romance de 1873: uma viagem pelo desconhecido, pelas sombras da alma humana. No começo é como uma brisa fria num deserto escuro, por onde eu caminho sozinho, indeciso, sem saber se continuo, porque o caminho é longo – na verdade não há caminho, nem trilhas, nada que indique por onde seguir, só deserto, escuridão e frio. Mas decido continuar; e os personagens vão aparecendo, alguns loucos, outros sombrios, misteriosos, a maioria imprevisível.

De repente a leve brisa se transforma em vento. Ainda sei quem sou, vejo-me ainda inteiro: um ser programado para viver em sociedade, para atender às expectativas do sistema, embora meu verdadeiro eu (rebelde, mas carente de vigor) me jogue às vezes para as margens. Sei quem sou: cidadão moldado pela normalidade – pai normal, marido normal, profissional normal, seguindo uma vida normal, em busca de um sucesso normal.

Sigo. Do nada o vento se transforma em ventania. Meus cabelos esvoaçam-se, não adianta arrumá-los, a poeira me fere o rosto, meus olhos ardem. Nessa fase os personagens se revelam mais, dão mais corda aos seus demônios, ou se fecham mais, cabisbaixos, silenciosos, cheios de mistério. Como eu disse, alguns são loucos, e sua loucura é demoníaca: dizem o que pensam a todos, e riem, gargalham histéricos, mas ninguém liga, porque são loucos. Amo os loucos de Dostoievski... De todos os seus personagens, os loucos são os mais puros, os mais verdadeiros. São eles que apontam o dedo para as feridas e riem. Mas também gosto dos normais que aos poucos revelam o que realmente são por trás das máscaras, dos artifícios, dos protocolos, das regras e convenções. Seus demônios ganham força e instigam suas almas reprimidas a se revelarem para o mundo.

De repente, na página 222, estou no meio de um furacão. Não sinto mais o chão, estou voando, girando em alta velocidade num turbilhão de cenas estranhas, que se sucedem inesperadamente; diálogos ferozes, desesperados, angustiados (mãos se contorcendo, tiques nervosos, suores frios, lágrimas inexplicáveis); mas também uma alegria impetuosa, rebelde, libertária – demônios à flor da pele.

É aí que me vejo separado de mim. Não sou mais minha antiga construção, vejo-me livre de uma parte de mim (ou do meu outro eu), que circula comigo no enorme funil de vento, junto com os personagens de Dostoievski. Esse outro eu se revela para mim como é: um artifício, uma máquina; parece-se comigo, mas é diferente: triste, apagado, pré-programado para viver uma vida artificial; vejo-o claramente rodando comigo no turbilhão; enquanto meu verdadeiro eu (ou o que resta de mim, agora mais forte) é um caos de instintos e emoções livres, cercado de demônios – não espíritos do mal, que me instigam para o mal e querem minha perdição; não, não é isso: meus demônios só me querem livre, verdadeiro, original e único. Afinal, quem sou eu? Confesso que não sei.

No momento estou assim. É o que Dostoievski faz comigo. Pela leitura de outros livros seus, sei que me recomporei ainda no furacão, e que este me cuspirá no final, como um escarro. Acordarei no deserto, me levantarei e encontrarei de novo a civilização. Sei também que estarei mais forte, mais livre, mais vivo...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 06/11/2015
Código do texto: T5439857
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