Perda
Levanto a viseira do capacete. Seus olhos estão semiabertos e sangue escorre pela sua boca. Ela tosse debilmente esforçando-se para respirar. Apoio uma das mãos atrás de sua cabeça e delicadamente retiro o capacete. Apoio sua cabeça em meu colo. Percebo que há uma elevação em seu peito. Tateio-a levemente; ela tenta gritar, mas o som termina afogado em sangue. Abro o zíper de sua jaqueta, pouco acima do mamilo há uma haste metálica perfurando seu seio esquerdo. Levo a mão até suas costas; meus dedos voltam rubros. Rasgo uma de minhas mangas, envolvo as extremidades da haste com os chumaços.
Aproximadamente doze pessoas cercam o carro. Não a conhecem, mas estão visivelmente emocionadas; com raiva. Quando quebram os vidros dianteiros o motorista acelera, quase deixando outras três vitimas pelo caminho. Não vai longe; além dos vidros quebrados o para-choques está amassado e um dos faróis estilhaçado.
De repente a expressão dela muda. Seus olhos estão arregalados, fixos em meu rosto. Ela tenta levantar uma das mãos, levá-la até meu rosto, mas o esforço para pelo caminho. Agarro sua mão antes que ela toque o solo; beijo-a várias vezes. Ela sabe que sou eu, reconheceu-me. Sorri.
Não sei se ela pode me ouvir, mas começo a assobiar. Ela adorava música, aliás nossa paixão por música foi o que nos uniu. Um sentimento poderoso, naquele momento a única coisa que eu sabia que podia confortá-la. Limpo seus lábios, seu sorriso está intenso, tão lindo quanto conseguia me lembrar. Ela tenta me acompanhar, mas seus balbucios são indistinguíveis.
Pouso meus lábios sobre os dela. Macio, salgado, férreo, pegajoso. E gelado; muito gelado.