QUASE VILÃS
Gosto das heroínas difíceis. Perguntei pro meu namorado: por que será? Ele deu uma risadinha. Romance, para ser bom, tem que ter uma heroína geniosa, explosiva, que por pouco - por muito pouco - não é a vilã.
Scarlett O'Hara. Linda, esperta, rica, mimada, infantil. Todos a queriam e ela sabia muito bem o que fazer com essa informação. Tinha o mundo aos seus pés, incluindo todos os homens que viviam nele, a começar por seu pai. Inventou um amor não-correspondido, só para dar graça a sua vida de dengos. Por alguma coisa ela tinha que fazer beicinho... E fez em "O Vento Levou..." inteiro. Scarlett não queria nada da vida além de festas, espartilhos apertados e um marido. Ou dois. Ou três. Então veio a Guerra Civil e fez dela uma lutadora, uma verdadeira guerreira, enfim, a heroína do filme. Ela cuidou dos soldados feridos, cuidou da esposa do amor de sua vida, fez o parto do filho do amor de sua vida, cuidou da casa de sua família - a épica Tara - e por suas terras passou fome, matou, chorou, se humilhou, se vendeu, se vingou, se entregou a Rett Buthler e não teve mais sossego. O melhor é que ela passou por tudo isso deixando claro que era contra a sua vontade, que por ela continuaria sendo a filhinha-rica-mimada-que-tinha-tudo-de-mão-beijada do início do filme, que por ela a Guerra que se danasse, os ideais que se danassem, o mundo que se danasse e não a importunasse. Palmas a Ms. O'Hara por sua sinceridade.
Catarina Earnshaw. Ou Linton. Ou Heathcliff. Só pela quantidade de sobrenomes dá pra perceber que ela infernizou a vida de alguns rapazes por sua saga. A heroína de O Morro dos Ventos Uivantes era o diabo encarnado. Amarrou a alma de Heathcliff na sua e quem disse que largava! Pisava, pisoteava e ainda dava cuspidelas em cima. Arrastou o moço por onde foi e ele, mesmo todo esfolado, não deixou de segui-la nem depois de morta. Queria mais. Queria o espírito de Catarina encarnado em qualquer coisa que ele pudesse machucar. Sim, machucar, pois eis que o fulano não deixava a dever nada pra ela em matéria de gênio ruim. Relacionamento difícil o daqueles dois. E apaixonante. Quanto mais se lê, quanto mais ruindades se descobrem em Catarina, quanto mais cruel ela se mostra, mais se adora sua vivacidade, sua força, seu magnetismo. Catarina é deliciosamente má. E não vê motivo nenhum para esconder isso. Palmas a Ms. Cathy por sua verdade.
Emília, a Marquesa de Rabicó. Boneca feita de pano, toda de pano, logo, sem coração. Sentimento é coisa que passou longe daquela lá. Uma "diabinha", como carinhosamente é tratada pelos habitantes do Sítio do Pica-Pau Amarelo, apelido que não dissimula a verdade. Emília é esperta, perspicaz e audaz; sempre a primeira em tudo e pra tudo; toma a iniciativa em qualquer situação, por ela e pelos outros, pois decide quem vai, quem fica, quem não tem que se meter na história. Emília não tem pena e humilha sem dó seus companheiros, nada a sensibiliza, nada a move de sua soberania e despotismo. Através da língua afiada e das ações insensíveis de Emília que Monteiro Lobato fez o que quis, disse o que quis, desafiou quem teve vontade. Aproveitou-se do carisma da boneca falante para pintar o sete no cenário político-social brasileiro da época, como se todas as críticas mordazes que saíam daquela boquinha de pano não passassem de brincadeiras infantis, ingênuas e sem maiores objetivos. Emília, brinquedo por excelência, objeto teoricamente inanimado e, portanto, desprovido de responsabilidades, atingiu imunidade máxima e deitou e rolou na cabeça de quem bem entendeu. Inclusive dos seus leitores. Palmas a Senhora Marquesa de Rabicó por sua atitude.
Como vêem, tenho motivos de sobra para amar minhas heroínas, por mais difíceis que elas sejam. Elas são imperiosas, voluntariosas e perigosas - como qualquer vilã; mas se guardam o direito de cometer as maiores atrocidades do mundo abusando do jeitinho meigo, dos olhares doces e do sorriso estonteante - como qualquer mocinha.