Cresci na Tijuca, um bairro da zona norte do Rio de Janeiro rodeado de cinemas por todos os lados. Ser tijucano da geração dos anos 1970 significava cumprir um destino: tornar-se um cinéfilo.
 
Carioca, América, Tijuca, Bruni-Tijuca, Art-Palácio, Studio Tijuca, Cooper Tijuca, Olinda, Tijuca-Palace, Cinema 3, Comodoro e por aí vai... Criança, levado por meu pai, descobri o prazer das salas refrigeradas assistindo às matinês de Tom e Jerry no Art-Palácio. Nessas salas eu ri, escondi lágrimas, me entusiasmei, levei sustos, firmei amizades e povoei a minha solidão com os sonhos que transbordavam das telas. Hoje, a lembrança mais viva de um tijucano de meia idade é ter vivido numa filial de Hollywood.
 
Com o passar do tempo, o advento dos shoppings e a evolução da tecnologia empurraram as grandes salas de rua para o abismo. Aos poucos, todos os cinemas do bairro arriaram as portas – em sua maioria viraram igrejas. Minhas referências mais fortes foram varridas da Praça Saenz Peña. No fim, não sobrou nada. Os cinemas da Tijuca migraram em blocos para dentro dos claustrofóbicos corredores dos shoppings.
 
Por sorte, à medida em que eu ia amadurecendo, o mundo se estendia. Perambulava muito por São Cristóvão, na sede da Editora Ebal, à procura de exemplares atrasados da melhor revista de cinema da época, a Cinemin. Nela eu aprendia mais sobre cinema, sobre a crítica de cinema. Foi através de uma carta que enviei à Cinemin, pedindo mais informações sobre a atriz Jane Seymour, que recebi uma resposta que revelava o endereço de correspondência da diva. Datilografei para Londres e me voltou uma foto da estrela de “Em algum lugar do passado” com um belo autógrafo e dedicatória. Emoção inesquecível. Graças à Cinemin, também reavistei o camarada Ricardo Cota, com quem eu havia perdido o contato. Passei a acompanhar religiosamente o seu trabalho. Além de amigo, me tornei um fã.
 
O universo continuou se expandindo e pisei pela primeira vez na Cinemateca do MAM. Se a memória não é traiçoeira, foi quando assisti ao Anjo Exterminador, de Buñuel. Havia uma atmosfera mágica no dia em que desembarquei do metrô, na estação Cinelândia, percorri a Av. Calógeras, atravessei a passarela da Infante Dom Henrique, descendo aos pés do Museu de Arte Moderna. Vislumbrei aquele monumento da arquitetura sabendo que estava ali antes que eu surgisse no planeta. Já havia história num lugar onde eu ensaiava as primeiras cenas que fariam parte da minha história.
 
Na Cinemateca, assisti a um dos filmes que mais me comoveu na minha modesta jornada de cinéfilo, “A pequena loja da Rua Principal”. Um filme tchecoslovaco ao qual me rendi, que me arrancou um choro engasgado e que ainda guardo a esperança de rever no mesmo lugar em que me acomodei na primeira vez. Não sei bem o porquê, mas depois de um período frequentando regularmente a Cinemateca, fez-se um hiato. Parei de ir.
 
Em 2015, aconteceu uma daquelas surpresas que despertam as alegrias do cotidiano. A Cinemateca volta a ilustrar os suplementos de cultura dos principais jornais, aparece em matérias de programas da TV e sua programação é anunciada até nas rádios. O templo em devoção ao cinema, que andava meio desbotado na memória, ressurge com o mesmo esplendor do passado no qual se fez sua fama. Num momento em que o espaço para a cultura na imprensa encolhe mais e mais a cada dia, eu testemunhava um milagre midiático. Não foi à toa. Por trás disso havia um nome, ou melhor, havia a marca da paixão pelo cinema. Ele, o amigo que iluminou as lendárias páginas da Cinemin: Ricardo Cota.
 
De repente, lá estava eu atravessando novamente a Av. Calógeras, superando a rampa da Av. Infante Dom Henrique com os passos pesados pela idade, desbravando os irremediáveis canteiros de obras do Centro e alcançando o monumental MAM. Não podia ser melhor, naquela tão querida sala de projeção, reencontrei Frank Sinatra. Assisti a uma bela palestra sobre o cantor dos belos olhos azuis. Em um outro dia, um novo evento, ao qual também compareci. Então, tive certeza, a Cinemateca nos proporciona o aconchego daquele cinema que a gente ama, que nos moldou junto com outros tantos fenômenos culturais. A Cinemateca é um paralelo com os antigos cinemas de rua, ela integra a nossa alma, é a face companheira que consola a nossa solidão coletiva. A Cinemateca é um santuário que precisa resistir e resiste.
 
Com a Cinemateca vieram os amigos, os antigos e os novos. Vieram os abraços. Veio a reaproximação e a alegria da convivência com os irmãos de espírito. Enquanto nós estamos ali para viajar nas películas, o Cota realiza. Está lá, matando o famoso leão do dia, todos os dias. Com ele, a Cinemateca não apenas resiste, mas ganha força, revitaliza-se, renova-se.
 
Escolho uma poltrona, sento-me em silêncio, o ambiente escurece. Glauber me olha da tela e com ele ressurgem os ideais teimosos que atravessaram intactos as décadas do meu caminho. Se a Cinemateca vive, a minha juventude persiste.
 
No regresso, em êxtase, paro num bar. Peço uma dose. Um brinde: vida longa à Cinemateca do MAM



 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 01/11/2015
Reeditado em 01/11/2015
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