O Que Nem Precisa Ser Dito

Acordou com o barulho de xícaras e talheres que vinha da cozinha, mais alto, somente os comentários em tom de reprovação pela chegada da nova vizinha. Seus pais estavam indignados, a mãe, um pouco mais.

_ Era só o que faltava, morar em frente a uma aberração, vou ter que falar com o síndico na próxima reunião de condomínio. Isso aqui já foi muito melhor habitado. E se a gente não diz nada, eles tomam conta, daqui a pouco o prédio vai estar tomado por bandeiras de arco-íris, vão querer até pintar as paredes de cor de rosa. E as crianças? Péssimo exemplo pra elas, podem crescer achando que há normalidade em tudo isso.

O pai, não menos intolerante, apenas mais reservado, limitou-se a sinalizar afirmativamente com a cabeça, enquanto lia seu jornal e olhava insistentemente para o relógio.

_ Seu filho está atrasado.

_ Qual? Aquele que eu fiz sozinha? Pelo que me recordo, houve uma grande colaboração sua. Nem tão grande assim - murmura, de forma que o marido não a escuta.

_ ... é modo de dizer, mas vou deixá-lo ir a pé se não estiver pronto em dez minutos.

_ Eu vou apressá-lo!

_ Não precisa - surge o garoto ainda vestindo a camisa -, nem de pressa e nem de carona, combinei com uma amiga, vamos de ônibus hoje.

_ Uma amiga? - pergunta o pai que pela primeira vez no dia, tira os olhos do jornal e os direciona aos presentes.

_ Amiga. Homens e mulheres podem ser amigos somente.

_ Mas é bem melhor quando...

_ ... Quando os pais não se intrometem na vida pessoal dos seus filhos. Tchau pra vocês.

Antes de sair, lembra-se da revolta da mãe mais cedo e a questiona:

_ Ouvi alguma coisa sobre queixas que serão feitas ao síndico. Algum morador causando problemas?

_ Nada demais meu filho, espero resolver antes mesmo que você tenha contato com aquela... aquilo.

Ele sabia o que era "aquilo", ou melhor, quem era. No dia anterior, voltando da aula, viu aberto o apartamento da frente, trancado há mais de seis meses, quando o antigo morador, um discreto senhor pouco visto, foi embora levando apenas uma mala de rodinhas. Encontravam-se esporadicamente, sempre no elevador, tinha cabelos na altura dos ombros, presos em rabos de cavalo, pele branca, aparentemente macia, nenhum sinal de barba, estilo formal, das poucas vezes que ouviu sua voz, percebeu que era suave, bem aguda, talvez por isso não falasse muito. Havia um quê de feminilidade naquele homem, era mais uma sensação do que exatamente constatação. O via em si mesmo, em todas as dúvidas ainda não respondidas, mas nada iria "depor contra" o reservado condômino, apreciado por ser pacato e silencioso, apesar dos rumores acerca da sua sexualidade.

Não resistiu, precisava saber se era mesmo ele, logo após sua partida, muitos especularam o que teria levado o vizinho exemplar, que não dava festas, nem recebia visitas, a ir embora, temiam ter ele vendido o apartamento a quem não reunisse as mesmas características. Num súbito ato de coragem, enxerimento também, olhou além da porta escancarada, viu uma mulher, estava de costas, arrumava empolgada algumas peças decorativas e de tão imersa em sua atividade, não notou o intruso. Ela não era totalmente estranha, havia algo familiar, algo que já tinha sentido. Impressão confirmada ao encará-la.

_ Posso ajudar, rapazinho?

Era a mesma voz, a mesma pele, cabelos mais longos, soltos dessa vez, o mesmo ar feminino, agora escancarado, nada contido, um olhar que não expressava acuamento, medo, tristeza, só plenitude, segurança. Era ele. Na verdade, era ela, quem sempre foi. Ficou feliz ao perceber que não estava louco, mesmo inconscientemente, um dia, a enxergou de verdade.

_ Desculpe a intromissão, é que há muito tempo não via sinal de moradores nesse apartamento, fiquei curioso, não me leve a mal.

_ Não tem problema. Nos veremos sempre a partir de agora. Vim pra ficar.

_ Eu moro aqui, bem em frente.

_ Eu sei.

_ Sabe?

_ Sei. E sei que você sabe. E o que sabe.

Meio desconcertado, resolve ir.

_ Minha mãe me espera pro almoço. Seja... bem vinda.

_ Obrigada. E manda lembranças aos seus pais.

Não disse nada, os pais não aceitariam as lembranças, não aceitariam a presença, não aceitariam o óbvio. Então, nunca disseram nada, a vida inteira, como quando o flagraram usando o vestido da mãe e desfilando no meio da sala. Não diziam nada, mesmo sabendo de tudo.

Restou admirar a coragem daquela mulher. Coragem que talvez nunca teria.