A Notícia – notificação de uma morte

 
Por que se escreve?

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A noite caíra feito telhado carbonizado.
A friagem era típica do inverno tropical. O vento rugia urros de maus agouros no pomar embocando no corredor que levava à rua. A casa estava toda fechada pronta para as vigílias e os sonos seguidos.
 
Bateram na porta. Era o Congo avisando a Angola que a Mama África havia sido encontrada morta por ele que chegara do trabalho.
 
Choro, lastimação e saídas apressadas...
E o menino ali assistindo aquele teatro de dor e querendo entender. Quando se deu conta estava assentado na cozinha com a avó Lisboa que lhe explicava o jogo da vida e morte. A inexatidão de tudo, o vazio, o nada lhe provocou profunda dor no íntimo. Nada. Nada. Nada lhe restava senão a irracionalidade do choro. O pranto tornou-se prato profundo de sopa sem gosto.
 
A casa ficara deserta a não ser pelo menino e a sua avó. O menino estava tão deserto que não lhe restava mais ninguém a não ser ele e ele mesmo consigo sentindo o espaço vazio da imensa casa. Todos os demais haviam ido preparar o velório.
 
O dia amanheceu com flores sendo colhidas para preencher o caixão ordinário da defunta cujo corpo não preenchia o espaço do mesmo.  Era ela miúda tulipa negra insuficiente para a imensa roxa jarra.
O menino queria também participar daquele colhimento. Todos colhiam margaridas e ciprestes. Ele, o menino, fora à jardineira escondida e colheu a rosa, única flor da roseira. Na pressa e na sua meninice não cortou o tamanho certo e suficiente. Ele entregou a Angola que em soluços retrucou:
- O cabo está curto e é só um botão de rosa. Vou pô-lo no copo d’água perto do filtro.
 
Todos saíram para o enterro de Mama África. Aquela mulher tinha nascido de escravos. Ela gerara servos. Vieram da roça e moravam em barraco alugado com dinheiro de roupa lavada.
Angola era empregada doméstica acolhida porque tivera filho quando solteira. Para não ir para zona de meretrício ou para asilo dos alienados deixava ser explorada a troco de cama, comida, roupa e telhado. Congo era na verdade seu filho e não irmão como diziam – assim era afirmado e pactuado  para evitar mexericos entre os bons cristãos brancos. Congo morava com Mama África, sua avó.
 
O menino branco todos os dias observava o botão de rosa que no copo fora deixado por sua Bá. As lágrimas de Angola nutriam a flor que acabou se desabrochando em compacta rosa – um sol rosáceo que serviu de estruturação para o equilíbrio afetivo do menino que precisava entender  o mundo preto no branco.
 
A rosa que se abriu daquele botão de flor trazia a notícia que a vida continua independente daqueles que morrem e não sentem mais a dor dos vivos.
A cada um uma história a ser concluída.
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Escrevemos   porque...
                       ...porque lembramos.
                       ...porque é necessário compreender.
                      ...porque é necessário fazer catarse para suportar as dores que são nossas e as dos outros desabrochando saudades, lembranças e nostalgias – roxa, lilás, branca.     
 
A flor da dor!
 
 
"Não há vivos;
há os que morreram e os que esperam a vez."
Carlos Drummond de Andrade

(O Avesso das Coisas)
 

 
Leonardo Lisbôa
Barbacena, Dia de Finados, 2015.


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Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 30/10/2015
Reeditado em 30/10/2015
Código do texto: T5432386
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