Ramon e a tempestade

Ramon aprendeu com sua amiga Arminda a eliminar rancores e ódios da mente, o que lhe fez muito bem. Antes ele registrava tudo, memorizava cada ofensa, cada humilhação, e sofria muito com isso. Tinha o hábito de anotar num caderno os desaforos que as pessoas lhe faziam, para não esquecer. Quase diariamente abria o caderno e lia uma passagem ou outra, o que reavivava mágoas antigas e, muitas vezes, enchia-o de ódio. Segundo Arminda, isso era prejudicial à sua saúde. “Essas dores nas juntas que você tem”, ela lhe disse uma vez, olhando-o nos olhos, “são causadas por esse veneno que você produz aí dentro, meu filho; e aquele excesso de gazes, que você me relatou, não tem nada a ver com dieta: vem da sua alma; porque ódio fede”.

Nesse dia, nos olhos de Arminda, Ramon viu uma luz. “Ela tem razão”, ele pensou; e decidiu mudar. Rasgou o caderno. Levou os pedaços para o quintal e tocou fogo. Depois voltou à casa da amiga. Sentia-se mais leve, mais animado, estava até sorrindo, o que raramente fazia. “Ótimo, meu filho, mas queimar o caderno é pouco”, disse-lhe Arminda. “É preciso limpar a mente também, remover dela todas as coisas ruins que as pessoas lhe fizeram, todos os sentimentos negativos por elas gerados”. “Mas como?”, pensou Ramon. “Sou de carne e osso, tenho sangue nas veias, não sou santo”.

“Exercite-se, Ramon”, recomendou Arminda. “Crie uma nuvem de tempestade imaginária e deposite nela tudo que te perturba, não só o que os outros lhe fazem e o ódio que sente por eles, mas também o que você mesmo cria para te ferir. Depois descarregue essa nuvem num lugar bem distante, num deserto, num oceano, na boca de um vulcão. Faça-a chover por horas, dias seguidos se for preciso”.

“Uma nuvem de tempestade...”. Ramon ficou pensativo o dia todo; e à noite, insone, lembrou-se de uma humilhação que sofrera e da pessoa que a provocara: uma mulher chamada Jandira que, segundo Ramon, era asquerosa como uma lesma gigante, autoritária, vaidosa ao extremo, orgulhosa, invejosa, venenosa. Ela o humilhara na frente de um grupo de pessoas havia dois ou três meses, por causa de uma bobagem. Moralmente, ela o tinha derrubado no chão e pisado em cima dele sem dó nem piedade. Foi terrível.

Ramon decidiu então testar a nuvem de tempestade. Imaginou-a pesada, cinza, quase preta, prestes a desabar sobre a cidade e inundar tudo, causando grandes estragos. Imaginou Jandira em pé ao lado de sua caminhonete preta importada, enfiada num tailleur cinza, de salto alto, horrorosa, achando-se o máximo dos máximos, rindo e debochando de tudo e todos ao seu redor (via-a como um holograma, mas parecia tão real!). Ramon então sentiu seu ódio por ela crescer, viu-o materializar-se numa enorme bola de fogo vermelha (ódio puro!) que, com muito custo, ele conseguiu conduzir até a nuvem.

(Ao receber todo aquele ódio, a nuvem de Arminda começou a lançar raios vermelhos e a ficar ainda mais escura).

Só que ao invés de enviar a nuvem para um lugar distante, como tinha sugerido a amiga, Ramon colocou-a bem em cima da imagem de Jandira, que olhou para cima, assustada, e começou a entrar na caminhonete, com medo de receber um raio na cabeça. Mas Ramon ordenou: “Fique onde está, sua maldita!”, e ela obedeceu. Ele tinha controle total sobre a nuvem. Fez um raio cair bem perto dos pés de Jandira, que pulou de susto e começou a chorar de medo. Ramon pensou: “Vou explodir sua cabeça e depois queimar seu corpo até ele virar um tição”, e começou a se preparar para o golpe final; mas, de repente, lembrou-se de Arminda e desistiu. Olhou para a nuvem, depois para Jandira... “Não posso fazer isso”, disse para si. “Para quê? Cada um tem o que merece. As energias circulam... Ela receberá de volta o mal que fez. Não posso julgá-la, muito menos puni-la, nem de mentira... Que ela siga o seu caminho e eu o meu”.

Ramon então fechou os olhos e fez a imagem de Jandira desaparecer, em paz. Em seguida conduziu sua nuvem imaginária para bem longe, para o deserto de Sonora, na fronteira do México com os Estados Unidos, e a descarregou por quase três horas seguidas: chuva torrencial, tempestuosa, com muitos raios e trovões...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 29/10/2015
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