DIÁRIO DE UM BANANA DE MEIA-IDADE

DIÁRIO DE UM BANANA DE MEIA-IDADE

Como o diz o meu amado pai, que aos 83 anos, faz canoagem e rapel, “o problema não são as estatísticas, o problema é quando você é a estatística”. Estatisticamente eu sou uma minoria. Dói do mesmo jeito. Eu me refugio na noite. Você foge para onde? Eu me refugio questionando tudo que posso. Se eu parar de questionar morro. Tudo para mim tem que ser intenso. Se não for intenso não me interesso. Nasci super ativo, curioso que é uma desgraça, adorava mexer em tudo, tocar as pessoas, o que me tornava inconveniente muitas vezes. A criança que fascina é a mesma que enche o saco. A criança bonita, fofinha, é a mesma que pisa nos seus calos. A criança espontânea que provoca risos num comentário ingênuo é a mesma que desaponta os pais quando tira notas baixas. Somos adestrados, não tem como ser diferente. Somos selvagens civilizados, exibindo a casca de educação que nos foi imposta. Somos sobreviventes. Há infinitas maneiras de viver e morrer. Sem perceber nos tornamos espectadores dos dias que se sucedem moldados pela rotina. A droga, é que numa merda de um domingo sem graça decidimos ser especiais. Aí começa a ansiedade, que vira angústia que vira depressão. Nasci inquieto, permaneço inquieto, morrerei inquieto falando sozinho. Alguém há de lembrar alguma coisa que fiz ou escrevi. Você já se imaginou no seu velório? Eu já, incontáveis vezes. E não é que é legal. Um monte de gente chorando por você, ou rindo de você, não faz diferença. O grande barato é que você está lá no meio daquele ambiente penumbroso, deitado num caixão, maquiado feito uma miss, quem sabe mais belo e sorridente do que esteve em vida. Aí você enxerga aquele conhecido remoto que jamais imaginou presente no seu velório. Por que ele está lá? Amigos mais próximos não estão. E o número de pessoas? Quanta gente minha morte é capaz de mobilizar? Não aceito nada menos do que uma multidão. Sou o cara mais querido do mundo. Minha mulher está lá, já combinei que vou primeiro. Se precisar até registro em cartório. Meus filhos também. A imaginação é minha e eu posso me dar a esse luxo. Morro antes de todos que eu amo em demasia. Não tem negociação. Por enquanto está dando certo. No meu velório todo mundo fala bem de mim, sente a perda inestimável. Melhor ainda se alguém ficar histérico. Alguém se descabelando pela minha partida. O que eu poderia desejar além? Morto, frio, imóvel, mas limpinho, desorganizando a cabeça de um alguém inesperado. Sim, porque a histeria tem que partir de pessoas inesperadas. Esposa, filhos, pais, irmãos ?!? Esses não contam. Tem cabimento imaginar que no meu velório todos eles não estarão chorando aos cântaros? Tudo bem, tem aquele parente mais discreto, que chora para dentro. Isso não me magoa. Chorar ensimesmado dói mais do que inundar uma dúzia de lenços. Sirvam-se do café, chá, bolacha, esfihas, coxinhas, façam um banquete, garantia de que ficarão mais tempo. Não bebo, mas podem servir bebidas alcoólicas à vontade. Cerveja, caipirinha, uísque, e se alguém ficar bêbado, ótimo. Tomara que faça um discurso bonito. Fale livremente amigo alcoolizado, até meus podres. Fica mais credível. Pensando bem, é um grande privilégio imaginar em vida o meu velório. O script é sempre o que eu quero. O que vão fazer depois com o defunto não me interessa. Não gasto minha imaginação com essa parte. Quando o fato acontecer, a escolha é de vocês, tanto faz. Me enterrem, me queimem ou doem o meu cadáver para um hospital universitário. Doação de órgãos acho difícil. Não que eu seja mesquinho, mas creio que já não há mais nada que se aproveite recheando a minha pele. O momento do meu enterro, cremação, o que seja, não quero nem saber. Esse fica fora dos meus delírios. Da minha epifania macabra. Nunca pensei em ninguém descendo o meu caixão numa cova ou espalhando as minhas cinzas no mar. Estou cagando para isso.

Como a grande maioria dos zumbis que habitam o planeta Terra, sou o covarde certinho que não quer magoar ninguém. Abomino a mediocridade, mas todos os dias cumpro o ritual do rei dos medíocres. Dente escovado, cabelo penteado e um par de borrifadas de desodorante nas axilas. Aí visto minha calça de linho preto, a camisa de cores neutras e me garanto que os sapatos combinem com as meias. Tudo dentro do esperado.Que bosta! Daí sigo para o meu “empolgante” trabalho de funcionário público onde me

“deleito de orgasmos” numa orgia de formalidades. “Amo” ser um burocrata idiotizado.

Se tem uma coisa que me anima nesse mundo é a irreverência. Sem ela estaríamos condenados à boçalidade eterna. Acredito que a irreverência nos tirou das cavernas. Alguém tinha que esculhambar a crença do outro para que o novo pudesse ter chance. Reverências e salamaleques são excelentes para quem deseja que a “Casa Grande” e a “Senzala” se perpetuem. Pobres e plebeus recolham-se a sua desimportância. A “República dos Coronéis”, que depois de um upgrade, passou a ser a “República dos Doutores” não admite ser questionada. “Viva la vida”