A Legião Urbana Nunca Foi a Maior Banda de Rock do Brasil
Naquele tempo o cenário musical no Brasil era agraciado com a chegada de muita gente talentosa e ávida por um lugar ao sol. Não havia espaço nem saco para as onomatopéias efêmeras e diarréicas que hoje assolam uma juventude que, pelo menos musicalmente, parece não saber de onde veio nem para onde vai. O que havia de escroto, brega e infame eram os inocentes Luis Caldas, Yahoo, Roupa Nova e enlatados afins. A turma mais “antenada” e um pouco mais esclarecida curtia o pop internacional que nos era imposto e um rock nacional ainda donzelo, puro, altamente “new wave” (para usar um termo típico da época) e despretensioso. Dentro desta “tribo”, a oferta era farta: Os Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Engenheiros do Hawaii, Titãs, Camisa de Vênus, Plebe Rude, Biquíni Cavadão, Capital Inicial, Barão Vermelho, Zero, Uns e Outros, Ultraje a Rigor, e Legião Urbana (paremos por aqui sob pena de esta crônica ater-se apenas a citar nomes de boas bandas dos anos 80).
Em que pese a diversidade de opinião acerca do que vou tentar sustentar, a maioria dos jovens oitentistas mais esclarecida elegeria a banda de Renato Russo como a mais importante da cena pop-rock nacional. Com efeito, apenas Cazuza ousaria se igualar a ele como poeta do rock. Renato conseguia botar nas canções da Legião a dose certíssima de poesia e de rebeldia, com algumas raras melodias ricas e polidas. Digo raras porque qualquer entendedor de música classificaria de antemão o repertório da Legião como musicalmente pobre, básico, simples, com a maioria das canções compostas por 3 acordes puros. Mas falar, numa canção de rock, direto ao coração era um dom exclusivo da Legião Urbana. Suas belas canções realmente tocavam a alma e faziam o jovem daquela época pensar em amor, em paz, em poesia e esquecer (ou lembrar!) a novidade que os entorpecia.
A beleza das letras da Legião pode ser facilmente notada em trechos como “Quando não estás aqui sinto falta de mim mesmo” (Sete Cidades – As Quatro Estações – 1989) e “Quero ter alguém com quem conversar, alguém que depois não use o que eu disse contra mim” (Andrea Doria – Dois – 1986). Renato entremeava passagens bíblicas (Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar – As Quatro Estações – 1989) com loucuras desconexas típicas de dementes (Depois do Começo – Que País É Este – 1987). Lutava contra o crescimento incontido e impoluto das grandes indústrias (Fábrica – Dois – 1986) e a favor de um país liberto das garras da escravidão multinacional (Sete Cidades – As Quatro Estações – 1989). Denunciava a violência urbana (Baader Meinhof Blues – Legião Urbana – 1984) e o tráfico de drogas (Mais do Mesmo – Que País É Este – 1987 e Conexão Amazônica – Que País É Este – 1987). Previa que o Brasil não iria pra frente tão facilmente (1965 – As Quatro Estações – 1989 e Que País É Este – Que País É Este – 1987). Criticava com uma balada grudenta e ao mesmo tempo lúdica o abandono de crianças (Pais e Filhos – As Quatro Estações – 1989) e retratava com maestria a falta de grana da juventude daquele tempo (O Teatro dos Vampiros – V – 1991).
Sua capacidade de criar era tão espetacular (quando ainda saudável) que conseguiu compor um verdadeiro hino na sala de espera da gravadora EMI-Odeon (Índios – Dois – 1986). Era um compositor, sem sombra de dúvidas, muito a frente do seu tempo. Os anos 80 não estavam prontos e corretamente adaptados para receber tamanho talento misturado a tanta rebeldia e incompreensão. Por outro lado, o líder da LU era simplesmente insuportável. O seu Acústico MTV tem a ingrata participação de seus comentários excessivamente efeminados e fora de contexto. Frases ridículas como “geeeeeeeeente, amanhã vai sair na revista que o Renato Russo errou a letra de propósito” soam como um soco na boca do estômago. Imagino que, como eu, todo fã da LU troca o DVD quando Renato, ao invés de cantar sua voz grave e rebelde, começa a tentar diálogos chatos com a platéia. Mas ser odiada e amada, entendida e controversa, óbvia e enigmática eram artimanhas fundamentais dessa banda. Quem, me digam, ousaria compor canções de 9 minutos contando histórias que casariam bem mais facilmente com acordes sertanejos? Renato criou a impagável história de João de Santo Cristo (Faroeste Caboclo – Que País É Este – 1987) que se tornou um sucesso onipresente em qualquer reunião juvenil entre os anos 1987 e 1990; relatou o amor entre dois improváveis cidadãos comuns (Eduardo e Mônica – Dois – 1986); narrou o suicídio de um jovenzinho rebelde (Dezesseis – A Tempestade ou O Livro dos Dias – 1996) e construiu a indecifrável e bela epopéia de rock misturado com música medieval (Metal Contra as Nuvens, V, 1991). Os empresários e as gravadoras remoíam as vísceras a cada criação não-radiofônica da banda, já que o sucesso seria óbvio, avassalador e retumbante mesmo com faixas que durariam o tempo de 3 intervalos comerciais.
Há uma fase triste na discografia da LU, com canções lindas (Os Barcos – O Descobrimento do Brasil – 1992), poesias sofridas e belas (Giz – O Descobrimento do Brasil – 1992), mas com melancolias dispensáveis (A Via Láctea – A Tempestade – 1996 e Leila – A Tempestade – 1996). A fase solo de RR prefiro nem citar, pois vê-lo cantando em italiano coisas melosas a la Pepino Di Capri abriu uma verdadeira ferida em quem acostumou a ouvir maravilhas do rock-poesia essencialmente made in Brazil (Acrilic On Canvas – Dois – 1986, Há Tempos – As Quatro Estações – 1989, Daniel na Cova dos Leões – Dois – 1986 e Teorema – Legião Urbana – 1984). Com tudo isso, assim como ousei escrever no título, a maior banda de rock do Brasil é, sem dúvidas, os Titãs. Porque a melhor é a Legião.