Os balões e o senhor
Os balões e o senhor
Sonho sempre foi um assunto que deixava as conversas mais tristes, não era de meu agrado lembrar que nunca me lembrara com nitidez das narrativas de meu inconsciente. Para completar meu desânimo venho de uma família que acredita no poder obscuro dos sonhos e sou filho de uma mulher que conta renitentemente cada detalhe ínfimo de seus sonhos mais bizarros. Confesso que sempre tive inveja disso, mesmo que eu não visse o onírico como algo determinante é de lá que eu podia me deleitar com as pinturas de Dalí, ou mesmo com os textos de Kafka, e desse mesmo mundo eu pouco tinha certeza, apenas vinha a vontade de provar.
Ainda sem entender o que aconteceu eu prefiro não discutir a razão, pouco do racional deve ser colocado em jogo quando se fala de sonhos, e por isso prefiro acreditar que deveria relatar o que me ocorreu. Como de costume aos domingos, o levantar parece roto, a despeito de um Sol flamejante regado a uma temperatura digna de um país tropical eu continuava lento em minha odisseia rumo ao dia, relutei em me descobrir, fiz questão de passar alguns minutos sem usar meus óculos, fiquei de pijama. Aliada a minha vontade de continuar no sono veio em minha mente, por um momento, histórias, flashes de um filme no qual eu tinha passado, visto, vivido, sentido, mas que não me parecia mais lógico que um déjà-vu.
Em minha frente havia um senhor, cabelos grisalhos que pareciam carregar a cor de seus anos de casamento, prata, suas rugas eram prova de alguém que muito se preocupou, em seus lábios alargados e grossos a certeza da felicidade, adentro de seus olhos verdes uma só mensagem: cuidado. Infelizmente não sei ao certo o nome desse senhor, apenas recordo que o mesmo, assim como eu, tinha dificuldade para levantar da cama, mas havia de fazê-lo para garantir as refeições, e algo mais que eu ainda não pude captar. Contando com os infelizes obstáculos da idade, o senhor se vestiu lentamente, colocou seus óculos, tomou seu velho café preto acompanhado de um pão na chapa, escovou os dentes. Estava claro que ele sairia de casa, e mesmo a preguiça invadindo seu corpo ele, surpreendentemente, foi lembrar a esposa que a amava e selou o sentimento com uma rosa do quintal e sua assinatura.
Andou, seus passos mesmo lentos eram certeiros, todo o semblante preguiçoso ao sentir o calor das ruas, o vento da orla e a rotina se desfez num rompante de obrigação, que ele traduziu em um sorriso tímido e braços atentos. No caminho para o trabalho, o senhor andava a distribuir “bom dia”, abraços aos que conhecia e sorrisos emudecidos para os sisudos desconhecidos, até que se chegasse ao local da labuta. A simpatia do senhor resplandecia em seu local de trabalho, como uma espécie de encanto, ao adentrar no zoológico o senhor arrancava os mais sinceros cantos dos pássaros e os mais divertidos pulos dos macacos. Como um ritual que se perpetuaria durante todo o cotidiano, aquele senhor entrara em uma sala, com o auxílio de uma bomba enchia os balões de todas as cores, numa espécie de materialização de sua leveza interior.
Era hora, os ponteiros denunciavam a abertura dos portões do zoo, crianças, adolescentes, adultos e idosos podiam, a partir de agora, admirar os animais e, com sorte, comprar um balão a esse senhor. Passava de meio dia e o senhor não havia vendido um só balão, aliás, tinha perdido um deles em forma de coração que voara despretensiosamente. Nada disso parecia abatê-lo, tomado de uma certeza serena ele foi almoçar, deixando os balões presos numa árvore qualquer. Agora saciado ele correu em direção aos balões, dotado de uma avidez incomum, e para minha surpresa ele recontou os balões e agora faltara um, de repente aquele senhor chorou um choro manso e reconfortante que, agora me fazia lacrimejar. Sem entender o motivo quis continuar a adentrar o âmago desse senhor, e abruptamente ele voltara para casa, trilhando seu caminho usual, até que cruzara com uma senhora mais velha, muito bem-vestida, dotada de um lenço na cabeça ela parecia estar absorta encarando sua face refletida num balão roxo.
Ainda sem entender a relevância desse fato continuei a acompanhar o senhor que chegara em casa e dormira um pouco, até ser acordado por sua esposa, juntos os dois foram contar o saldo de balões do dia, e, para meu espanto, haviam sido vendidos: um balão coração e um balão roxo. Esperando um certo abatimento do casal após o fracasso do dia, pude ver o beijo mais sincero e cúmplice dos dois, ali eles marcavam uma vitória, algo pequeno demais para meus olhos sonolentos, mas gigante o suficiente para a leveza daquele senhor. Não mais que de repente os flashes que eu via foram sumindo, os matizes tão firmes daquele filme que acompanhava foram substituídos apenas por um médico, esse ainda de bata adentrava seu carro, saía do consultório até pomposo no qual eu podia ler: Oncologia. Aturdido com minha primeira lembrança do que pareceu ser um sonho eu encarei aquele médico em minha mente como um psicanalista, sua presença, até para um sonho, parecia um devaneio, até que pude usar de uns artefatos subjetivos, fui capaz de relembrar com os olhos agora mais brilhantes aqueles olhos verdes, e tudo foi corroborado quando vi em seu carro um balão em forma de coração que relembrara de todo o carinho e leveza que a rotina daquele senhor deveria possuir.
Ainda sem saber dimensionar o tamanho do meu orgulho do meu consciente por lembrar desses fatos, fico preso em algumas dúvidas que direcionam hoje meu acordar: para onde terão ido os meus balões em forma de coração e para quem eu queria entregar meus balões roxos? Respondo que, diante de tudo que assisti queria poder dar dois desses meus balões ao senhor de olhos verdes.
Gabriel Melo 25/10/2015