C a m i n i t o

Era sexta-feira, véspera do sábado de Zé Pereira. Apesar do som de músicas de carnaval que rolava nas lojas, num café o shopping um músico solava antigas músicas num acordeón. Um homem aparentando uns 65 anos tomava um cafezinho e ouvia com prazer as músicas antigas, até comprara um CD do músico. Esse músico atendia a pedidos, e o do homem foi "Les Feuilles Mortes". Estava terminando o cafezinho quando ouviu alguém à sua frente chamar o músico. O homem estremeceu, aquela voz reavivou nele lembranças de mais de 50 anos. Era uma voz aveludada mas meio enérgica. Será que é ela?!!!, pensou aturdido, o coração aos pulos no ritmo da timbalada. A certeza veio quando o músico começou a tocar a música pedida pela mulher: o tango "Caminito". Olhou para a mesa a sua frente, ela estava de costas, alta, elegante e o mesmo cabelo ondulado mas agora embranquiçado. Não havia mais dúvida: era ela. O primeiro impulso dele foi dar o fora, imediatamente. Mas uma força irrefreável ordenava que fosse vê-la cara a cara. Chamou a mocinha que atendia as clientes e pediu um uísque duplo, tomou, pagou e se levantou. Quando chegou na mesa dela tocou de leve suas costas, ela virou-se e olhou para ele surpresa, balançou a cabeça incrédula, tirou os óculos de armação dourada da bola, colocou no rosto e olhou fixamente para ele e aí riu. Ele ficou encabulado e perguntou: "Não está me reconhecendo, Carminnha Riquinha?!!!". A mulher respondeu com uma certa ironia: "Caminito?!!!, eu devo ter esquecidode acender a vela pro meu santo e por isso estou vendo assombração". Riram, ela então disse: "Senta, homem de Deus!, vai ficar aí parado brincando de estátua?". Ele sentou nervoso, ela também estava nervosa, mas fingia melhor que ele. Era o encontro do pierrô apaixonado com a sua Colombina do passado acontecendo no presente. Olharam-se então com ternura e não se contiveram: choraram copiosamente, as lágrimas rolando nos seus rostos. Ela enxugou as dela num xale, ele na manga do paletó. Mas talvez porque o musico resolvera tocar a "Evocação" de Nelson Ferreira, voltaram ao normal. Ela quebrou o gelo: "Você mudou muito, nem parece o moleque de óculos escuro e camisa vermelha banllon que vivia se enxerindo para as moças. Continua enxerido, Caminito?". Ele respondeu calmo mas um pouco amargo: "Errou, Riquinha, mas não vou arriscar nada sobre você. Fiquei apenas com o último acontecimento, o golpe do baú que você aplicou num ricaço". Ela cortou altiva: "Eu não, quem armou tudo foi mamãe, você sabe disso". Ele concordou: "É verdade, mas quem casou foi você". Ela irritada desabafou: "Sim, casei, e quer saber? , de certa forma fui quase feliz, o cara era um homem muito bom. Tive dois filhoscom ele, ambos hoje são independentes. E eu também sou independente, vivo bem, tenho minhas economias. E você?". Ele baixou a cabeça e afirmou: "Eu sou um perdedor nato, um aposentado do serviço público, divorciado ha muito tempo, tenho um filho que mora nos Estados Unidos. E vou levando a vida lendo, ouvindo música, assistindo a filmes, batendo papao, matando o tempo antes que ele me mate". Ela insistiu: "E paquerando as mulheres, né mesmo?". Foi franco: "Só raramente, me acomodei, sou um velho, Riquinha". Começaram a rememorar o passado, até que ela olhou para o relógio de pulso e disse que precisava ir para casa, estava esperando uns telefonemas dos filhos, mas pegou a caneta e um guardanapo de papel e colocou seu endereço e telefone, e disse ao sair: "Quero você nesse endereço às nove horas em ponto, vamos jantar uma comida levee recordar tim-tim por tim-tim o passado. Se você não for eu me intrigo pelo resto de nossas vidas". E saiu apressada, mas muito elegante, aecia uma grande dama.

Ele foi para o seu apartamento e tomou um banho nos trinques, vestiu o velho terno de guerra que usava em ocasiões especiais, penteou o cabelo, olhou-se no espelho e saiu. Primneiro passou no florista e comprou um buquê de rosas vermelhas, as preferidas dela, depois passou num bar e tomou três uísques cabói, ai pegou um táxi e exatamente às nove horas estava na portaria do edifício que ela morava. Nem precisou falar com o porteiro, este rindo disse: "É o doutor Caminito? Dona Carminha disse que o senhor ia aparecer com umas rosas vermelhas nas mãos. Pode subir, ela gosta de pontualidade".

Ela abriu a porta, estava com vestido simples mas elegante. Ele achou o apartamento muioto confortável. Sentaram-se num divã de couro e começaram a desfiar a sessão nostalgia. Pareciam namorados. Depois de esmiuçarem grande parte do passado, ela fezx uma pergunta: "Escuta, homem, como é que entre tantos tangos bonitos, você encucou justamente com Caminito quando fomos sorteados para dançar juntos na festa da escola?". Ele esclareceu o fato que lhe rendera o apelido: "Porque quando passei um tempo estudando com o professor Ângelo, ele gostava de tocar na flauta esse tango e às vezes cantava-o, então eu lhe perguntei o que significava Caminito e ele respondeu que era caminhozinho. Veja bem, Riquinha, todo dia eu tomava aquele caminhozinho que pssava por sua casa na esperança de vê-la, mas sempre estava tudo fechado, então quando da festa eu me lembrei desse caminhozinhoe finquei pé no tango Caminito". Ela lhe fez uma revelação: "Seu bobo, eu brechava todo dia você passando , via pelo postigo da janela, mamãe ficava uma fera, ela tinha horror ao nosso namoro, dizia que você era de uma família de comunistas lisos, mas pobres que ela". Riram até às lágrimas. Ms logo se recuperaram e ela lembrou-se de servir o jantar frugal: salada, arroz bem soltinho, filé de frango e vnho chileno. cendeu as velas e apagou as luzes, ligou o som e logo ouviram o Bolero de Ravel. epois da janta ela acendeu as luzes e apagou as velas, tomaram ainda um cálice de Cointreau e um cafezinhoe voltaram para o divã para fazer a digestão. Depois de alguns instantes daquela conversa "tapioca modeu beiju", ele se levangtou tirou o CD de Ravel do som, sacou do bolso o que tinha comprado ao músico do acordeón e colocou no som a faixa 5: o tango Caminito, aproximou-se dela e disse: "A senhorita me concede a honra de dançar mais uma vez comigo este tango arretado?". Ela, claro, aceitou. Dançaram juntinhos,ela sussurando no ouvido dele a letra do tango. No final voltaram para o divã ofegantes, descansaram mas de mãos dadas, um olhando para o outgro, com carinho e desejo, deppis de alguns momentos de silêncio ela fez a provocação final: "Caminito, querido, você trouxe a cartela de Viagra 100?". Ele respondeu firme: "Para fazer amor com você, Riquinha, não preciso de nenhum estimulante". Foram para a cama e se amaram como nunca antes tinham se amado.

Repetiram os encontros drante todo o carnaval, chegaram inclusive a acompanhar o Bloco da Saudade. Na terça-feira à noite combinaram que ele viria na quarta de cinzas buscá-la parfa irem à Igreja pedir pedão pelos pecadilhos cometidos. Eles nunca iriam à Igreja. A vida, como ele costumaba dizer, citando um poeta, era um sonho, e os sonhos sonhos são, e além de fugaz ela costuma pregar surpresas e ser traçoeira. Na quarta-feira quando chegou de táxi na pracinha que ficava na frente do edifício dela, ao atravessar calmamente a rua, um carro dirigido por um bêbado, em alta velocidade e vindo na contramão, o atrapelou, ele morreu na hora. ERla viu o acidente da varanda. Foi ao velório e ao enterro dele, mas não derramou uma só lágrima, chorava e corava muito por dentro. Nunca mais teve alegria. A sua única diversão era visitar o túmulo dele sempre colocando nele rosas vermelhas, e mandara colocar nele uma placa com um verso do tango Caminito: "Desde que se fué/ Nunca mas volvió/ Seguiré sus pasos? Caminito adiós".

Ela morreu um ano depois, sozinha e dormindo. Quando a econtraram ela tinha um sorriso nos lábios; quem sabe, morrera sonhando com Caminito.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 22/10/2015
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