Assim ou...nem tanto 16

O sonho

Sabia que a casa era a dele porque, no caminho da entrada vi algumas crianças, de idades diferentes, com o seu rosto. Mais crianças existiam sós ou acompanhadas das respetivas amas na escadaria de acesso ao primeiro andar e uma, ainda bebé, ao colo de uma mulher madura que eu sabia ser a mãe de toda a prole. Ele não falara em almoço mas tudo estava a preparar-se para que a refeição fosse servida naquele salão de altíssimas janelas veladas por cortinados leves e reposteiros de tecido lavrado com ramagens. Eu estava de fato e gravata mas, quando olhei para os pés vi-os metidos nuns chinelos sintéticos de sola grossa que acabavam de atrair os cortinados que se enrolavam nas minhas pernas à medida que andava. O dono da casa fez uma foto. Vi, nitidamente, o flash muito forte, quase um raio, sobre o tom envelhecido do ambiente. Ele sorria sentado num cadeirão de espaldar alto. Na cena seguinte estou a falar com o jovem que era o mais velho dos filhos e além de descalço também já não tenho calças. Não recordo a conversa mas sei que ele se ria da maneira como eu ali estava descalço e de cuecas. No mais estava tudo segundo os padrões em uso, da camisa de botões de punho de jade e ouro à gravata de seda em tons abertos. Decidi que o melhor era sair e saí. Percorri a alameda de cedros e pouco depois, estava na rua. Só não sabia onde deixara o carro e já não sabia voltar para a minha própria casa. Acordei e tentei interpretar este sonho tão marcante. Percebi que tudo refletia uma certa incompatibilidade com a realidade possível e a minha própria capacidade para a integrar. Percebi que não era daquela família, daquela casa, daquela situação social. A princípio não percebi a falta de sapatos convencionais e foi preciso perder também as calças para avaliar-me melhor e sair. O regresso às origens também estava interditado pela falta do carro e pelo desconhecimento dos caminhos. Em nenhum momento, no entanto, senti desconforto. Circulei como se tudo fosse natural, normal e aceitável. Os poetas costumam ser também surrealistas e toda a gente sabe que a realidade dos sonhos é sempre surreal. Acontece que a história sonhada tem a interpretação e a solução para um momento específico da nossa vida. Vi-me como certo para uma realidade complexa e fui-me apercebendo de que, afinal, não estava preparado para ser dali nem poderia, ainda que o desejasse, voltar às origens. Reconheci-me como ilha flutuante. Umas vezes sou e estou e muitas vezes me acompanho melhor sozinho.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 21/10/2015
Reeditado em 21/10/2015
Código do texto: T5422260
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.