A TERCEIRA FASE


Disse aos meus amigos, que falaria mais, que dividiria mais as emoções e as sensações de chegar aos sessenta.

A ideia era amadurecer melhor a forma com que colocaria, com que descreveria tudo isso, mas não me contive e vai de improviso mesmo. Poeta que é poeta não precisa ensaiar, preparar. Poeta que é poeta vomita versos em plena ventania sem que as palavras se espalhem. Sem que percam a sonoridade nos ditos, a harmonia das frases, o sentido e o prumo das emoções.

Pois que ontem, 14 de outubro de 2015, atravessei a ponte dos tempos, que cruza o rio da história, da minha história. Sim, uma ponte tipo aquelas velhas pinguelas, que fazem tremer as pernas e que os medrosos não atravessam nem sob promessa de felicidade plena do outro lado. Esses, os medrosos, os indecisos, os cagões (como dizia meu Pai), preferem ficar na margem, sentadas à sombra de pomposas árvores, só olhando as águas passarem, lamentando todos os azares e esperando sossegadamente a sorte chegar, sem ao menos terem a iniciativa, o risco de jogar o jogo do viver.

Ontem resolvi olhar a ponte, a pinguela, percorrer sua metade e sentar bem no meio, curtindo o seu balangar, sem nenhum medo. Com o mesmo destemor que a atravessei mil, milhões de vezes, arriscando tudo para alcançar o outro lado, onde entendia que poderia realmente estaria o bem estar, o prazer, a dita e propagada felicidade.

E ali fiquei um bom tempo. Acima as águas que desciam agora lentas. Houveram tempos em que elas desciam revoltas, arrastando tudo, em torrente que provocavam até desesperos, por vezes desilusões. Mas passaram e eu continuei ileso atravessando aquela pinguela.

Do outro lado, as águas já passadas pela ponte, seguindo rio abaixo. Meus olhos as seguiram até a primeira curva do rio. A partir daí, a partir de onde meus olhos não mais avistavam, minha memória seguia, seguia, levadas pelas águas passadas, bem do jeito que levam as folhas secas caídas das árvores.

Belas margens. Pomposas árvores, flores, frutos. Ahhh... belos frutos. O Charles, o Xandi, o João, a Luiza... belos frutos, viçosos, doces ao meu coração, amargos nos momentos de ausência. Ácidos nas desavenças. Mas frutos. Meus frutos.

Belas margens, compostos dos sonhos do menino criado no sertão, vendedor de laranja, de agrião, proprietário de um carrinho de mão logo aos 5 anos.

Enquanto descia as águas, montado nas memórias, assistia a tudo, uma vida inteira, 60 anos de sonhos, ilusões, ponderações, desatinos e realizações. Mais sonhos que realizações. Belas palmeiras ramalhudas nas margens, representando tantos amigos que fiz, alguns ainda nadando ao lado, outros ao longe, remando noutras águas.

E as roseiras... Quantas rosas vermelhas eu avistei nessa descida rio abaixo, nesse retrocesso permitido pela memória. Foram tantas amores, tantas paixões, tantas quimeras, alguns dessbores, outras doidices cometidas no afã das emoções energizadas pelos hormônios. Sim... estão ali nas margens do rio que desço, que as águas me conduzem, compondo a paisagem ribeirinha das primeiras duas etapas dessa saga tão minha. Unicamente minha.

É... caio na real. Sinto de novo o balançar inseguro da ponte, da pinguela. Olho as águas que descem e sei que continuarei subindo o rio. Sei que as pernas e os braços já não tem o mesmo vigor, a mesma energia. Mas a persistência, a determinação e o destemor foram e continuam revigorados pelos 60 anos de desmedidas iniciativas.

Outras pinguelas haverão rio acima e outros potes de regozijo existem do lado de lá das novas pontes.

Não terei, com certeza, outros 60 anos. Mas 59 serão suficientes para continuar vivendo, remando, que seja rio acima. Agora tenho a musa grudada ao lado, que certamente facilitará o navegar.

Essa ponte, esse rio, essas águas, provam sim que navegar é preciso e continuarei navegando, apesar dos 60.
Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 21/10/2015
Reeditado em 21/10/2015
Código do texto: T5422009
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