Cádiz, meu berço.

Quando o autobús de dois andares parava no ponto, eu e meu irmão corríamos escada acima para "sermos o condutor", e a alegria da criançada no andar superior enchia o coletivo de vida, mesmo que o percurso fosse curto.
Saíamos do condomínio aonde morávamos, frente ao mar, e em poucos minutos o autobús entrava pelas altas muralhas da cidade, através de um grande portal, cidade esta murada por terra, com mais de três mil anos, e tombada pela humanidade, e também pela história, as minhas próprias recordações.
Em Cádiz, a cidade mais linda que já pisei, pelo menos para mim, pois como dizia o poeta Fernando Pessoa ; " O rio da minha aldeia é mais importante que o Tejo, porque ele passa pela minha aldeia", é claro que Cádiz não é uma aldeia, longe disso, é a cidade onde Colombo saiu para descobrir a América, onde as Cortes se reuniam para definir os tratados da Espanha, onde as tropas napoleônicas foram expulsas pelos civis , e onde se travou a grande batalha naval de Trafalgar, contra os ingleses. Uma cidade histórica, pisada pelos fenícios , gregos, e romanos , e onde se respira tudo isto em cada esquina, toda cercada pelas águas, a poucos quilômetros da África, no extremo sul da Europa.
Eu e meu irmão nascemos em Cádiz, cidade onde meus pais foram morar quando se casaram, já que o meu pai trabalhava na Cia Telefônica , como economista, a sua profissão de toda uma vida. A cidade tem o formato de uma taça, toda cercada pelo oceano, e nós nascemos no alto dessa taça, onde o vinho se derrama para a boca.
Quando lá estive aos cinquenta anos, com a minha esposa, caminhei por cada canto, vi a estátua de Napoleão parado na calçada, e pude lhe tocar a capa esvoaçante, mas ele nem notou, os canhões ainda adornam as esquinas, negros , parados como relíquias do orgulho do meu povo, que duzentos anos atrás pegou em armas para lembrá-lo que aquele pedaço da Espanha tinha um dono.
Quando criança, aos sábados ,andávamos de mãos dadas com o meu pai, que ia nos contando toda a história, nos falando de cada rua e seus nomes, cada acontecimento, e nos levava para o seu escritório, pelos corredores da companhia telefônica , com milhares de fios nos intermináveis painéis, e ele dizia que cada fiozinho era o telefone de uma casa, e nós ficávamos perplexos diante de tudo aquilo.
Andávamos de "coche cavallo" , já com a minha mãe junto, numa carruagem altiva, coberta, com um cocheiro conduzindo a parelha até o cinema, ou a praça maior. O percurso era curto, mas ele sabia o quanto gostávamos do "coche", e fazia o nosso gosto, para o meu pai era um prazer .
Comíamos amêndoas ou castanhas na rua, quentes e aromáticas, e as vezes terminávamos à noite em algum bar de tapas, onde os meus pais tomavam vinho , e riam, saboreando a noite, e para nós o dia nunca terminava, parecia que tinha quarenta horas...
Quando voltei , caminhei sozinho muitas vezes, levado pelas recordações, e queria que eles estivessem lá , comigo novamente, mas o fato de ter voltado para as minhas origens me fez muito bem naquele momento, olhando para o caís avistei o barco onde o meu pai servira na marinha , atracando, um veleiro maravilhoso se aproximando, que fez inveja ao resto do caís, e o reconheci no mesmo instante, ele dispensava apresentação, e imaginei o meu pai de marinheiro , de branco e como na foto que tenho em casa , entre as velas e as amarras.
O passado e o presente se fundiram, como um único tempo, o que o faz parar na retina ,como a própria cidade, tombada pelo patrimônio, eu também me senti tombado junto, por vontade própria, e quando voltei para a casa da minha prima Mimi, a poucos quilômetros de lá, em "San Fernando ", ela me perguntou sobre o passeio, e eu só lhe disse; " Agora já posso morrer em paz" ! Ela entendeu !
Aragón Guerrero
Enviado por Aragón Guerrero em 20/10/2015
Reeditado em 02/05/2017
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