Convivendo
com milhas insônias
1. Primeiro implantaram, nas vizinhanças do meu coração, um marca-passo; um mês depois, arrancaram-me a vesícula. Sobre o marca-passo, dei detalhes sobre o seu implante em recente crônica, que repousa neste site.
2. Quanto a vesícula, em crônica, que também aqui publiquei, faz algum tempo, mostrei-me decidido a não extirpá-la e disse por quê. Veja o meu paciente leitor, se lhe interessar, o que escrevi em "Carrego comigo uma bomba". Com esse título, no tempo da ditadura militar, eu entraria fatalmente em cana.
3. Com a possibilidade de ser, a qualquer momento, atingido por descomunal cólica biliar, mudei de ideia e me submeti a uma laparoscopia; antes, portanto, que fosse preciso, para retirar o maldito cálculo, rasgar a barriga numa cirurgia invasiva e, por conseguinte, de maior risco.
4. A colecistectomia (arre!) foi um sucesso: três furinhos, no meu avantajado abdómen, foi o bastante para extrair as sacanas das pedrinhas, uma delas do tamanho de um ovo de codorna. O quê? Sim, de um ovo de codorna! Até o doutor aquele susto!
5. Depois das duas cirurgias, como disse, uma quase que imediatamente depois da outra, minhas insônias voltaram; e pra valer. Houve um tempo em que as insônias me traziam dolorosas inquietações. Inconformado, eu xingava, aos berros, o bom Morfeu, responsabilizando-o pelas minhas madrugadas indormidas.
6. Por causa do vácuo que se abria pela falta de sono, eu entrava em pânico, desconfiado de que minha noite não teria fim. Refestelado na minha cadeira de balanço, no silêncio monacal do meu gabinete, eu aguardava ansioso o primeiro raio de sol.
Sabia que, depois dele, os primeiros bocejos vinham me avisar que o sono estava a caminho. De repente, o embalo cadenciado de minha redinha cearense me ajudaria a mergulhar em sono profundo.
7. Ajudou-me a atravessar, mais conformado, minhas noites de insônia, o saudoso escritor Josué Montello (1917-2006), com quem converso sempre, voltando à sua irretocável obra literária.
Numa dessas madrugadas sem sono, lá pelas horas tantas, li, do autor de "Os tambores de São Luís", este texto: "À noite, já bem tarde, quando me recolho, sempre acompanhado por minha insônia, repasso os meus amigos mortos, e essa evocação é também o meu pretexto de orar por eles. Não preciso chamá-los: refluem-me à tona da memória e é esse o meu modo de ressuscitá-los."
8. Posso dizer que hoje as minhas insônias já não me torturam como outrora. Procuro trazer de volta, no silêncio que as envolve, não os meus mortos, como o Montello fazia, mas velhos amores... Ressuscitando-os, tiro de letra as madrugadas sem sono...
com milhas insônias
1. Primeiro implantaram, nas vizinhanças do meu coração, um marca-passo; um mês depois, arrancaram-me a vesícula. Sobre o marca-passo, dei detalhes sobre o seu implante em recente crônica, que repousa neste site.
2. Quanto a vesícula, em crônica, que também aqui publiquei, faz algum tempo, mostrei-me decidido a não extirpá-la e disse por quê. Veja o meu paciente leitor, se lhe interessar, o que escrevi em "Carrego comigo uma bomba". Com esse título, no tempo da ditadura militar, eu entraria fatalmente em cana.
3. Com a possibilidade de ser, a qualquer momento, atingido por descomunal cólica biliar, mudei de ideia e me submeti a uma laparoscopia; antes, portanto, que fosse preciso, para retirar o maldito cálculo, rasgar a barriga numa cirurgia invasiva e, por conseguinte, de maior risco.
4. A colecistectomia (arre!) foi um sucesso: três furinhos, no meu avantajado abdómen, foi o bastante para extrair as sacanas das pedrinhas, uma delas do tamanho de um ovo de codorna. O quê? Sim, de um ovo de codorna! Até o doutor aquele susto!
5. Depois das duas cirurgias, como disse, uma quase que imediatamente depois da outra, minhas insônias voltaram; e pra valer. Houve um tempo em que as insônias me traziam dolorosas inquietações. Inconformado, eu xingava, aos berros, o bom Morfeu, responsabilizando-o pelas minhas madrugadas indormidas.
6. Por causa do vácuo que se abria pela falta de sono, eu entrava em pânico, desconfiado de que minha noite não teria fim. Refestelado na minha cadeira de balanço, no silêncio monacal do meu gabinete, eu aguardava ansioso o primeiro raio de sol.
Sabia que, depois dele, os primeiros bocejos vinham me avisar que o sono estava a caminho. De repente, o embalo cadenciado de minha redinha cearense me ajudaria a mergulhar em sono profundo.
7. Ajudou-me a atravessar, mais conformado, minhas noites de insônia, o saudoso escritor Josué Montello (1917-2006), com quem converso sempre, voltando à sua irretocável obra literária.
Numa dessas madrugadas sem sono, lá pelas horas tantas, li, do autor de "Os tambores de São Luís", este texto: "À noite, já bem tarde, quando me recolho, sempre acompanhado por minha insônia, repasso os meus amigos mortos, e essa evocação é também o meu pretexto de orar por eles. Não preciso chamá-los: refluem-me à tona da memória e é esse o meu modo de ressuscitá-los."
8. Posso dizer que hoje as minhas insônias já não me torturam como outrora. Procuro trazer de volta, no silêncio que as envolve, não os meus mortos, como o Montello fazia, mas velhos amores... Ressuscitando-os, tiro de letra as madrugadas sem sono...