Sina de Capacho mala-sem-alça

Fim de tarde. O capacho mala-sem-alça foi curtir a sua happy hour num barzinho. Sentou-se numa mesa afastada e ficou bebericando o seu primeiro Cuba Libre, pensando com os seus botões. Gostava de ficar assim, absorto, mergulhado nos seus pensamentos. Divagando. Só tinha uma preocupação: que outro capacho não aparecesse para cortar o seu barato.

Felizmente, para ele, não apareceu nenhum colega, e enquanto sorvia a segunda dose de rum com Coca, pensava na vida. Como era difícil viver em sociedade! Quantas máscaras era obrigado a usar num só dia: a máscara de cidad

ão austero, a de patriota, a de caridoso, a de religioso prasticante, a de homem de sociedade, a de subserviente de carteirinha a até a de conquistador das capitus da vida, claro que as mais feiosas e mais rodadas.

Riu muito dessa última máscara. É que, como alguins dos seus amigos de roda social, vivia se jactando das suas conquistas amorosas, mas todos eles, sem exceção, estavam quase de "fogo morto", com o motor rateando e dependendo da assessoria especial de Dom Viagra. Só que a máscara de Don Juan contava muitos pontos na sociedade.

Riu também da máscara de moralista (falso moralista, frise-se), de ciddaão indinado com a corupção nas altas esferas. Só que essa "ira santa" se restringia apenas à area federal, nunca a estadual e muito menos à municipal, nada de falar dos trambiques locais. Pichar só o que for federal, nunca ninguém da patota. "Era só o que falatava!", pensou divertido.

E a máscara de religioso? Ah, todos eram santos e piedosos. Cristãos na verdadeira acepção da palavra. Às vezes divergiam uns dos outros, mas apenas no tocante as preferências por santos distintos,coisa sem importância, porque, no fundamental, na questão da fé, eram rígidos. Sua fé era ainabalável, irreversível, inquebrantável. Reconhecia, claro, como todo piedoso cristão, umas pitadinhas de avareza, uns tiquinhos de cobiça, uns quilinhos de maldade, uns pinguinhos de falta de seriedade, umas carradinhas de calúnias e falsos tstemunhos, uns fiapinhos de invejae uns bocadinhos de falta de personalidade. Uma s besteirinhas sem importância que o poder da fé invalidava. Eram humanos, e humanistas, apesar de capachos.

Pediu outra dose do "pirata" com bastante gelo e uma riodela de limão e uma coca. E para forrar o estômago pediu um pratinho de calabresa com batatinha. Continuou monogolando consigo mesmo. De repente se indagou sobre qual era a máscara que mais detestava. Foi sincero: era a devassalo dos poderosos. Era ter que adular permanentemente pessoas sem a importância das suas raízes, sema sua história, sem as suas tradições. Era ter que prestar vassalagem a indivíduos que nos áureos tempos ele taxava de gentalha e de pés-raspados. Era duro ser mandadopor quem não pertencia ao tronco histórico. "Por que cheguei a este ponto?", indagou de si para consigo mesmo. Aí lembrou-se de uma velha canção de Vicente Celestino que vffalava de um cantor que depsois de cantar nos maiores palcos do mundo, começou a decair até cantar em pleno picadeiro de um circo de quinta categoria. Sim, o paralelo era perfeito: de elite pensante e poderosa, de senhores de baraço e cutelo com brasões e o escambal, passaram a vassalos de tiranetes de plantão, ele e os seus iguais. Dóia muito ser obrigado a fazer esse triste papel. Mas o que fazer? Ele tinha que garantir o seu ridículo status, a sua fatiazinha de poder,a complementação do orçamento familiar. Ficou deprimido e lágrimas começaram a rolar nas suas faces e se misturaram ao Cuba Libre e até invadiram o pratinho de tira-gosto.

Depois de mais algumas doses ficou martelando num mesmo ponto: "Por que tenho de me submeter a esse papel de capacho? Por que tenho de viver falando mal dos que discordam do poder e dos poderosos? Por que não consigo ser independente? Por que tenho que apequenar e anular a o meu caráter?

Chamou o garçon e mandou tirar a conta. O moreninho gozador chegou com o papel na mão. O capacho mala-sem-alça assinou e disse bem baixinho que juntasse com as outras. O moreninho que era unha-e-carne com a oposição, respondeu falando alto para todo mundo ouvir que o proprietário do bar avisara que a conta do mala esdtava na estratosfera, e afgora só era para despachar a dinheiro. O mala então apelou para o último recurso, a carteirada: "Você sabe com quem tá falando,c cabrinha?";. O moreninho riou comoque está assitindo a desenho animado, tinha conseguido o que queria, irritar o capacho. Os presentes começaram a vaiar o mala. Ele saiu de cabeça baixa, fumaçando, sem olhar para ninguém, sabia que essa "gentalha" tirava seu couro, era uma "mundiça".

Foi em marcha batida para casa. Ia cumprir o último ritual do dia. E para isso não ia precisar usar nenhuma máscara. Em casa depois que vestia a bermuda e calçava o chinelo velho e sentava no divã estragado, voltava a ser ele mesmo, o sinhozinho de antigamente, o reizinho de marré-deci, orgulhoso, alguém que podia tudo (só no reino do faz de conta). Ficou ali sentadio e calado assitindo aos teipes do passado, a época de ouro, os anos de glória quando tinha o respeito de todo mundo, quando ele e os seus iguais eram os pilares da siociedade, quando sobrenome significava muita coisa, quando ousava ter uma idéia e ser independente, quando tinha direito de mandar às favas os arreganhos de ousadia de qualquer inferior ou novo-rico. "A, que saudade do passado!", pensou em voz alta, e a memória começou a projetar a sua frente outras cenas inesquecíveis: festas, solenidades, saraus, homenagens mil, toda sorte de reverências prestadas pela "gentalha". Waundo, enfim, chegou ao hoje, à realidade em preto e branco, suspirou triste; mas raciocinou que ninguém podia parar o tempo, que as coisas mudam e que nada será como antes. Chegou mesmo a admitir que a sua dependência se devia, quem sabe, ao destino e, talvez, ao desejo divino. E contra os desígnios de Deus ninguém podia. Mas logo se arrependeu: por vias das dúvidas não ia colocar Deus nessa sua decasdência moral. A fraqueza era dele mesmo. Só dele porque se tornara capacho por livre arbítrio. Olhou para o relógio de plástico no pulso (antigamente só usava Omega e Mido) e elmbrou-se que era hora de assitir ao noticiário. Ligou a tevê, precisava ficar por dentro das notícias parta no outro dia, logo cedinho, repassá-las ao "poderoso chefão". Nesse caso só relatavaa a notícia em si, deixava ao chefe o direito de comentá-la. Emitida a real opinião, ele concioradava com ela em gênero, número e grau. S o chefe achava assim, ele dizia amém; se achava assado, ele ficava todo tostado, não era doido de discordar. "Eu não posso perder o prestígio com o chefe", pensou divertido e cínico. Era a vida que apesar das surpresas e ingratidões, era muito boa e merecia ser vivida na sua plenitude. Nisso sentiou vontade de ir ao banheiro. Saiu arrastando os chinelos e cantarrolando alegre: "Eu sou o bom, o bom, o bom...".

Foi dormir como um justo, afinal precisava descansar porque no dia seguinte iria viver o mesmo triste e ridículo rosário de rituais de subserviência deslavada, se vergando, se arrastando e, o que é pior, sem nenhum resquício de coragem para reagir a essa doença maldita: a capachice. O capacho é um canalaha. Totalmente canalha. E priu.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 20/10/2015
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