DEUS, O EXCELSO CONSTITUINTE
 

Outro dia aqui no meu prédio houve um duplo homicídio. Um crime passional, que passarei a contar-lhes. Trata-se da história de uma moradora que supostamente traía o marido com um sujeito solteiro, morador no andar imediatamente inferior ao meu.

Doutor Gervásio, o marido traído, era um homem bem situado na vida, sem antecedentes criminais e sempre se mostrou a todos como um pacato cidadão. Por vezes nos encontrávamos nos elevadores e garagens do prédio e travávamos aquelas ligeiras conversas tradicionais de vizinhos de apartamento: bom dia! Faz muito calor hoje? Verdade! E assim por diante... Nada a reclamar do doutor Gervásio, um homem alto, com uma saliente barriga presa às calças por um chamativo suspensório. Sua idade beirava aos cinqüenta e cinco anos.

Dona Elvira Teixeira do Amaral, cujo duplo sobrenome viera do marido por ocasião do casamento, era bem mais nova. Pelo menos assim aparentava. Mulher bonita comparada ao doutor Gervásio. Ela possuía algumas gordurinhas a mais é verdade mas, mesmo assim, ficava longe de ser chamada de gorda ou feia. Era branca e tinha os cabelos e olhos negros. Exibia uma sobrancelha bem delineada e o rosto sempre bem maquiado, mesmo sem sair de casa e como dona de casa, o que denunciava sua sintomática vaidade.

Os Amaral eram meus vizinhos no 16º. andar. No 15º, ao final do corredor, imediatamente abaixo do meu apartamento, morava Antonio Manuel Coutinho, o "estilingueiro" do prédio. Tratavam-no pejorativamente assim em uma alusão de que ele carregava estilingues nos bolsos traseiros a fim de dar pelotaços nas "pombas" que voavam baixo em seus arredores. Mesmo que as moças ou senhoras não lhe dessem a menor bola. Entretanto, havia as que se lhe deixavam acertar, de propósito, pelas pedradas certeiras do estilingueiro Antonio.

Antonio era um homem de estatura média sem grandes atributos físicos mas, era sargento da PM e sabem como é, há mulheres que têm fetiches por coturnos e fardas. Na hora da cópula gostam de ser chamadas de "Elemento" quando em decúbito dorsal sobre a cama, a qual na hora "H", aos gritos, chamam de "viatura". De maneira que, o Mané Ricardão também era meu vizinho vertical de janela, onde gostava de tocar um Saxofone tão ruim quanto as suas cantadas. A janela também era seu lugar predileto para fumar cigarro e dar uns "tapas na macaca, que ninguém é de ferro", conforme me dizia sorrindo, quando eu, quase "chapado", chamava-lhe a atenção, pelo "fumacê" que subia ao meu apartamento.

Nos encontros pelos elevadores fiquei sabendo que o PM era evangélico e tocava na Igreja, onde era tido como obreiro exemplar. E também nos sobes e desces do prédio é que me contaram que o doutor Gervásio estava com deficiência de testosterona, para a qual fazia tratamento.

Bem, Dona Elvira, por sua vez, de nada se queixava e eu sempre a escutava cantarolando quando descia pela escada ao 15º. andar, supostamente visitar uma amiga que vendia produtos de beleza. Conforme eu dizia antes: sempre há mulheres que têm seus fetiches militares e ficou patente que Dona Elvira era uma dessas. E o doutor Gervásio, Advogado bonachão (o que já é estranho) e espirituoso, sempre dizia, ao referir-se à crise em que o país está passando: "tudo sobe, tudo sobe, menos ele não sobe", e apontava para o zíper da calça escondido debaixo da barriga.

Mas, como diz um ditado popular; "até as baratas transformam-se em feras ao descobrirem que estão sendo traídas". E não foi diferente com o pacato e educadíssimo doutor Gervásio!

A coisa foi se tornando tão escancarada que os vizinhos tanto dos apartamentos abaixo, no 14º andar, como os do 15º. começaram a reclamar do ruído de uma cama velha e de parafusos frouxos. "Nheco nheco nheco" se ouvia... E a orgia não cessava, segundo boatos pelos corredores e elevadores do prédio. Nos intervalos de seus momentos íntimos (pero, no mucho) iam até à janela para "fumacear", e daí a incomodar-me também.

Bem, em um dia agourento, porque eles existem, o doutor Gervásio chegou mais cedo do trabalho. Era domingo e ele costumava ficar em seu escritório durante todas às tardes dominicais para descansar na segunda. A fim de tratar de assuntos pessoais, dizia. Com a falta do seu amor em casa resolveu descer até ao 15º andar para encontrar com àquela que lhe jurou amor eterno, no apartamento da tal vendedora de produtos de beleza. Bateu à porta mas, a mulher não estava ou não o quis atender.

Antes de voltar ao seu apartamento ele se deu conta que os moradores daquele andar estavam na porta de seus apartamentos ouvindo a zoeira e na seqüência passaram a olhá-lo, como se estivessem diante de um extraterrestre. O doutor Gervásio era bom, mas não era bobo, e de chofre "sacou" onde estava a senhora Amaral. Um calor subiu-lhe à cabeça e foi logo tomado pela fúria dos pacíficos quando se sentem enganados.

Subiu imediatamente ao seu apartamento e apossou-se de uma faca de cozinha, cabo de madeira, e voltou correndo pela escada com seu corpanzil ofegante e começou a bater na porta do Antônio, o estilingueiro. Uma platéia olhava desconfiada de que nada de mais aconteceria, haja vista o histórico de bom cordeiro do doutor Gervásio.

Abre-se a porta e o doutor Gervásio foi entrando e atropelando o PM sem camisa mas, que usava um largo calção azul da corporação e calçava um lustroso coturno de cor preta. Dona Elvira estava nua sobre a cama, mais branca do que já era e tremendo muito. Pedia pelo o amor de Deus que o marido não a matasse, enquanto ele apontava a faca para o seu peito. Desfeito do susto inicial aproximou-se então, o fiel cristão, e sem saber o que dizer e fazer, apelou para única coisa que lhe passou no momento pela cabeça. Escuta doutor, espera um pouco, e mandou-lhe: "não matar", 5º. Mandamento de Deus, completou o crente. No que o doutor Gervásio rebateu de bate - pronto e extremamente enfurecido: "não comer a mulher do próximo", 9º Mandamento, seu desgraçado! E voltando-se para o estilingueiro cravou-lhe várias vezes a faca de cozinha em seu peito matando-o instantaneamente. Dona Elvira continuava na cama suando e tremendo. O Crente estirado no chão. O jurisconsulto, doutor Gervásio, com a faca ensanguentada às mãos voltou-se para ela, e sem um doutrinamento adequado, pensou um pouco e finalmente sentenciou: "santificar o domingo", 3º. Mandamento. Ato contínuo, cravou-lhe a faca em seu coração!

E o que Deus tem a ver com tudo isto? - Ora, os Dez Mandamentos foram a Carta Magna de Deus  e a mais perfeita que se conhece até hoje. Aliás, a única que nunca houve uma Emenda sequer. No entanto, a história do doutor Gervásio, da Dona Elvira e do Estilingueiro tornou-se uma espécie de jurisprudência do Direito dos homens, da qual se valem os Gervásios da vida para justificarem seus crimes em nome do direito à honra.

Luiz Carlos Gomes
Enviado por Luiz Carlos Gomes em 20/10/2015
Reeditado em 21/03/2023
Código do texto: T5420814
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