Faltando um pedaço do mundo

Em um período um pouco estranho da minha vida me vi morando sozinho por quase três meses no estado do Paraná, especificamente no extremo oeste paranaense e distante mais de 600 Km do litoral atlântico.

Era divertido analisar o local mais distante que eu já tinha visitado, procurando diferenças culturais e saboreando semelhanças com a vida na Bahia. Mas algo surpreendentemente divertido era quando após formular qualquer frase vinha uma inescapável pergunta:

- Você é de onde?

Amigos sempre me conheceram pelo sotaque carregado que nunca consegui esconder. Sendo assim, no Paraná a pergunta vinha com frequência, mas a resposta era sempre agradável.

– Da Bahia. – dizia com um cada vez mais habitual sorriso no rosto.

Quando tinha mais tempo e disposição ainda explicava com orgulho que vinha de uma pequena cidade da Bahia, chamada Coité.

O sorriso tornava-se cada vez mais comum com as minhas respostas pois já tinha notado na palavra “Bahia” o poder de soar como um verso naquelas terras. Os paranaenses não escondiam a curiosidade sobre descrições a respeito do meu Estado. Pareciam imaginar uma terra espetacular e perguntavam das praias, do sol, das festas e de toda sorte de imagens fantásticas e felizes que passavam em suas cabeças. Nunca me vi tão satisfeito com a minha baianidade. Eu aproveitava e dava corda, e assim o gelo era sempre quebrado quando precisava conhecer alguém ou perguntar algo para um desconhecido. Num local novo você sempre precisa de muitas informações, e ser simpático ajuda.

Foi quando, já acostumado com a recepção tão festiva, visitei um pequeno armazém, desses onde o dono é a única pessoa que vai poder ter atender. Atrás de um balcão envidraçado e velho uma mulher sentada, aparentando mais de 50 anos, tricotava qualquer coisa para afastar o tédio de uma rua tranquila. Eu buscava uma informação sobre aquele bairro que eu acabara de conhecer, buscando casas para alugar. Ela, com o crochê já largado, interessou-se pelas minhas origens.

Após a minha tradicional resposta, veio-me uma pergunta inédita e também estranha:

– Você já foi à praia?

– Claro!! - respondi com um tom de voz mais elevado que o de costume, como se tivesse ouvido uma pergunta insultuosa. Mesmo respondendo com um largo sorriso não notei o risco de ter sido grosseiro.

A senhora sorriu, mas não da forma que eu costumava testemunhar. Havia uma mudez naquele semblante, como se por um segundo ela não estivesse mais presente. Ao retornar a mulher explicou de forma seca:

– Eu nunca vi o mar.

Aquela resposta socou o meu sorriso com força, deixando um rastro de culpa. Eu havia frequentado e visto o mar. Ela não. Poetizei, cantei, namorei o mar. Ela não. Para mim era como se alguém nunca tivesse olhado o céu à noite e percebido as estrelas. O mar é um pedaço do mundo pra se testemunhar e tocar. Faltava aquilo àquela mulher e aparentemente ela sabia. Suas palavras seguintes, das quais não me lembro, confirmaram-me esta percepção. Talvez ela nunca o veria. Seus olhos velhos e cansados pareciam anunciar esse infeliz futuro. A conversa não foi longe. Ao sair do recinto resolvi olhar para trás para ver o nome do armazém e tomar como referência do bairro. Nesse movimento percebi um vulto. A senhora escondida atrás do balcão envidraçado, retornada ao seu crochê.

Di Ramos
Enviado por Di Ramos em 19/10/2015
Código do texto: T5420343
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