A vistoria anual

Acordo às sete;duas horas antes da vistoria do meu carro.Tomo café da manhã,faço a higiene pessoal e me visto.Tudo em pouco mais de meia hora.Pego a carteira,os documentos,o batalhão de chaves e saio.

Depois de quase ter o possante apreendido numa blitz por não respeitar o prazo limite da vistoria,ano passado,jurei que nunca iria passar por aquilo de novo.

O trânsito está bom,chego em menos de vinte minutos.Ao entrar no posto de vistoria,a decepção:Fila enorme para chegar à cabine de triagem.Pego o último lugar,atrás de carros das mais variadas marcas e anos.

__Esse carro é 2012,não?

É o vendedor de limpadores de para-brisa,que surge ao lado do meu uno.Mágica pura.

__ É sim,amigo.__respondo,fingindo não saber o que vem em seguida.

__Pois eu tenho aqui comigo o novo modelo de limpador;olha!__e estende para mim o limpador novo em folha que leva na mão direita.Realmente é bonito,mais bonito que o meu,já meio gasto pelos três anos de uso.

__Obrigado;mas o meu ainda está bom,obrigado.

Repito o obrigado para deixar claro que não estou chateado pela sua tentativa de ganhar o pão de cada dia.Não sei se funciona.

Minutos depois estou quase chegando à cabine.Um homem de calça jeans,tênis e camisa branca que traz na mão esquerda um isopor, está parado ao lado do primeiro carro antes da cabine.Ele aperta a mão do motorista do veículo e inicia uma conversa.O que será agora?Depois de repetir o papo em cada veículo a minha frente,ele vem até mim.

__Bom dia amigo!

Ele estende a mão direita,a qual aperto para não fazer desfeita.Agora consigo ver o que tem dentro do isopor;na verdade,um bloco maciço de isopor com um buraco escavado no meio:sanduíches supostamente naturais!

__Tenho o de frango,o de bacon,o de ricota,o de rúcula com fatias de pepino e aspargo,o de creme de milho,o de peito de peru,o de raspas de siri,o de camarão,o de lagosta...

Sem medo algum de estar exagerando,posso afirmar que o homem,cujo nome não mais me lembro,enumera mais de vinte tipos de sanduíches.Paro de acompanhar no quarto. Depois são os sucos e refrigerantes...No final da explanação,sou informado de que posso adquirir essas maravilhas culinárias com a esposa dele,que encontra-se num carro estacionado perto das cabines de vistoria.

__Muito obrigado,mas estou tomando omeprazol...gastrite,entende?

Resolvo usar o muito obrigado para frizar que estou impressionado com a explanação,digna de um masterchef.O omeprazol é para justificar a minha expressão de enfado por conta da azia.Desta vez não consigo escondê-la.Um defeito.Tenho que trabalhar melhor isso.São só alguns minutos,não custa nada manter,mesmo falsamente,o interesse no olhar.

O homem se afasta.No retrovisor,vejo que inicia tudo de novo com o motorista atrás de mim.Pela sua persistência,creio que o verei,dentro de alguns anos,num desses programas de empreendedorismo que mostram pessoas que enriquecem com o próprio negócio.Torço por ele.

Chego na cabine.A atendente,sem olhar para mim,confere meus documentos.

__Cabine de vistoria quatro,senhor__diz ela,ainda sem me olhar nos olhos,enquanto me dá um papel que confirma a informação.

Paro meu carro na fila quatro e logo fico sabendo,pelo motorista do veículo a minha frente,que o sistema está fora do ar.

__isso é uma vergonha!__pragueja o homem,enquanto levanta as calças e ajeita a blusa por dentro delas__Lá em São Paulo eles entregam o documento pelo correio!

Fico olhando para ele e concordo com a cabeça,sem dizer uma palavra.Não quero encorajar um início de papo.Vai que o homem é um desses tagarelas e resolve alugar meus ouvidos!

O homem volta para o seu carro e eu para os meus pensamentos.O sol resolve afastar as nuvens e sai.Três cães,legítimos vira latas,passam ao lado do meu carro.O suposto líder,de pêlo farto e fulvo,me lembra o Dunga,um cão da casa da minha avó materna.Este,porém,tem o olhar sofrido,diferente do semblante do Dunga antigo,bem tratado e feliz.Acompanho o grupo.Os três param em frente a um trailler e sentam-se ali.Minutos depois,uma mulher de avental branco abre a porta da estrutura de aço e coloca alimento em três bacias que,agora eu reparo,estão no chão.Matilha esperta!

Desvio meu olhar do almoço canino.Sem me surpreender,flagro meu amigo do carro da frente num colóquio animado com o motorista que o antecede na fila.Pelo olhar do outro homem,acho que acertei em não deixar o papo germinar entre nós.Tagarela sim!

Uma mulher loura,meio rechunchuda,vem andando na direção do meu carro.Eu a reconheço da vistoria do ano passado.Ela vende uma pasta de polimento que serve para todas as partes do veículo:painel,vidros,tecidos,espelhos...não me perguntem o nome do produto;juro que eu não sei.

Meu palpite é que ela não vai me abordar.Não comprei sua pasta ano passado,apesar dos seus brilhantes argumentos em favor da maravilha pastosa.Como acho que tenho um rosto marcante,ela vai lembrar de mim e não tentará novamente.

__O senhor conhece a minha pasta?__pergunta ela,segurando o pote verde e branco na mão esquerda.Ela não lembra de mim.Sou um cara comum.Um rosto comum.

__Eu já sou freguês,amorzinho!Uso sempre!Sua pasta é muito boa!__minto,usando parte do cinismo acumulado em mais de quatro décadas de vida.

Ela sorri marotamente.Acho que lembrou de mim.Não sou um cara totalmente comum!Aleluia!

Vejo pelo retrovisor o balanço dos seus fartos quadris enquanto ela se afasta.As gordinhas tem os seus encantos...

Quarenta minutos depois,o homem tagarela das calças que caem está sendo vistoriado.Ele tenta dialogar com o funcionário do posto sem sucesso.Parece que o cara baixinho de avental azul quer almoçar logo.

__O senhor conhece a minha lanterna?

Quase bato a cabeça no teto do carro.Distraído que estou acompanhando a vistoria do tagarela;que também,esqueci de mencionar,é careca,não reparo no cara que vende lanterna para automóveis parado ao lado do meu carro.

__Conheço sim,filho!Tenho até uma!__respondo,torcendo para que ele não queira ver a minha lanterna.

O homem se vai.Boa sorte para ele.Chega minha vez:faróis,setas,ré,luz de freio,pisca alerta,pneus,macaco,triângulo,chassi,limpador de para- brisa,esguicho de água do limpador de para-brisa;o extintor ele nem viu...Finalmente o teste de emissão de gases.Passo nos três quesitos.Eu sou um vencedor!

Pego meu documento 2015 e saio do posto com a cabeça erguida.Agora,quando passar por alguma blitz,poderei olhar nos olhos do policial,sem medo.

Resolvo curtir o momento de triunfo e chamo minha namorada para almoçar fora.

Hoje eu não trabalho.

arqueiro
Enviado por arqueiro em 18/10/2015
Código do texto: T5419125
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