ÀS PORTAS DO “DOUTOR JOÃO”
Eu o conheci há muitos anos e a despeito do tempo vejo que ele continua ali, firme na sua luta diária em acreditar que todos os milagres da vida transcendem em vontade resiliente, a qualquer tempo, todas as dificuldades de qualquer espaço.
Sinto que trabalha como se a cada dia lhe permeasse o entusiasmo do primeiro dia de médico.
Digo-lhes que o meu amigo, esse de quem vez ou outra sempre conto uma história por aqui, é um daqueles “básicos” médicos que já aprendeu, não apenas nas páginas herméticas dos livros de medicina mas em extenuante campo contínuo do exercício perplexo do seu dia-a dia de médico, que há doenças que fazem doenças, espaços que fazem doenças, atitudes que fazem doenças, palanques que fazem doenças, destinos que fazem doenças, holísticos abandonos que fazem doenças, enfim, aprendeu que "trabalhar saúde" é um complexo e milagroso rearranjo das possibilidades possíveis e principalmente das necessidades impossíveis ao meio.
Já, fazer doença , entre Homens é um movimento silencioso e contínuo que tende ao infinito.É como se fosse Karma existencial.
Com ele entendi que, diante do todo, se estar vivo é um notório milagre que urge por Graças incessantes.
Ali, ato contínuo do tempo, me conta o doutor João que aprendeu rapidamente que, por mais complexa que seja a doença, a cura vem quando menos se espera, inclusive por pequenas atitudes não catalogadas nos livros.
Já a profilaxia sanitária é um milagre a ser reinventado pela História da humanidade.
Frases de impacto como “desde que estive aqui minha vida mudou”- ouvidas em sobressalto, num repente duma anamnese compacta, em meio ao barulho ensurdecedor do corredor, ali, vazado ao interior da sala fria , cujas paredes não acolhem sequer a intimidade dos seres, aquela ode dum paciente à sua mudança de vida dedicada ao Doutor João, ara, só poderia ser brincadeira...
Mas não era.
Aos poucos- me conta o doutor- ele foi aprendendo que resultados quase mágicos são produto do trabalho dum simples acolhimento verdadeiro, coisas inexplicáveis da obra de alma, posto que agora já acredita que até aquelas suas paredes inanimadas realmente têm ouvidos.
Coisa tão simples de se constatar pela existência: Nunca há acolhimento em canto algum... sem amor pelo que se faz e sem empatia para com o seu igual.
No mar da vida o barco é o mesmo...mudam apenas as acomodações.
Acolhimento?
Sim, algo que não é um termo técnico e frio só para se embelezar políticas públicas de eficiência duvidosa. ACOLHIMENTO: do verbo acolher para se poder colher resultados humanísticos, o verdadeiro objetivo da arte médica, desde que o Homem resolveu acolher a si mesmo no processo complexo de “saúde-doença”.
E pela sua trajetória, doutor João já faz coleção de auscultas inusitadas, proferidas da insistência lingüística dos tantos agradecimentos que vêm do coração de gente tão refinadamente simples, em avalanche de reconhecimentos anônimos ao mundo, limitados àquele seu espaço invisível: uma infinidade de “obrigados” vindos muitas vezes em vários dialetos representativos desse Brasil tão grande, de tantos Brasis distintos sofridos e belos, que vez ou outra o colocam pensativo.
“Obrigados”, jóias raras sem preço material, tatuados no seu tempo de médico, que vêm e que hoje voltam desesperançados da cidade grande que já não ilude de sonhos intangíveis aos que aqui chegaram para a busca duma vida digna.
Todavia, aquela sua gente de tantos e tantos anos o ensina que no exercício da arte médica há sempre uma poção de magia a ser exercitada, uma troca simbiótica de emoções inenarráveis às letras, cujo ensinamento também não está nos livros didáticos.
Há movimentos que só se aprende vivenciando sua própria dinâmica de vida.
Aprendeu o meu amigo que “ gente de todas as gentes” sempre nos ensina às demais gentes; e com o tempo doutor João entendeu o milagre na mais intrigante lição profissional trazida até ele:
"Sorriso, olhos e aperto de mão são remédios, potentes, milagrosos ressuscitadores e promotores de saúde”.
Ele então, como se procurasse respostas para aquela procissão de gente perene à sua porta, certa vez me desabafou: ”às vezes vou à exaustão, mas eles me fazem sentir que sou mágico, embora eu só seja feito do mesmo barro deles”.
Doutor João não é mágico, eu sei, nunca foi e decerto que nunca será.
Mas confesso: com o tempo dele eu aprendi que ali é preciso se ser ininterruptamente mágico para se continuar a seguir de coração inteiro.
Ali, ele continua a ser um insistente e básico soldado em campo da saúde esquecida, algo incansável, cuja missão a cada dia- e sempre mais”- é ao menos tentar resolver, mais remediar, todos os problemas do mundo insolúvel, inclusive aqueles que fazem e mantém doenças ratificadas e diplomadas, sem que as enxerguemos muito claramente quanto às suas etiopatogenias perenes e sociais.
E entre um atendimento e outro...um exército aliado bate à sua porta:
“Minha mãe mandou essa cartinha para o senhor, ela não poder vir, dá para atender ela agora?” “Doutor, não tem dipirona na unidade, por quê?”, “doutor, não consigo fazer meu ergométrico marcado há um ano!”, “doutor , minha receita venceu, e eu posso morrer agora!”, “doutor, o senhor errou minha receita, não colocou “uso contínuo”, “doutor, o senhor não pediu o hemograma COMPLETO para ver justo o meu colesterol”, “doutor, desinframatrório ataca os rins?”, “doutor, acabou minha insulina, preciso do KIT completo bem preenchidinho senão entro em coma!” , “doutor, minha pressão subiu no fim de semana, vou ter derrame, o que eu faço agora?”, “doutor, preciso do meu laudo do INSS senão não recebo esse mês, como vou comer, doutor?”, "doutor acabou meu carvedilol, meu coração vai parar!" “doutor, quero laudo pro ônibus e pro trem senão não trabalho, e todos laudo com quatro vias cada um e sem data!”, “doutor , hoje dá pra fazer todos os meu alto custo?” ,“doutor, meu vizinho mandou agradecer que já conseguiu operar o coração com seu encaminhamento”, “doutor, hoje estou bem, só quero sete encaminhamentos pra um médico!”, “doutor ,não entendi sua letra, dá pro senhor escrever direito...?” “doutor quando vai ter grupo de diabetes e de pressão alta, por que o senhor sumiu dos grupo?”, “doutor truxe o saco de remédio pro senhor me mostrar como toma, eu esqueci tudo que me falou há um ano atrás e não sei ler!",“doutor por que o senhor não marca o meu retorno, já faz oito meses que não volto!?” “doutor saí da consulta agora mesmo, mas voltei porque esqueci de dizer que...”, “doutor, o senhor só vai atender vinte e duas pessoas hoje, dá pra me dar só uma olhadinha?”, “doutor, não tem psiquiatra e meu pai tá surtando aqui fora, o senhor resolve?!”
Mas milagrosamente doutor João não surta...por fora.
Ele só faz poesia.
Porque a medicina de certa forma é o exercício da poética que enlaça a vida.
Certa vez, ele meio triste, ameaçado de desânimo, me relatou um verso instantâneo, algo vindo do além, quase mediúnico, vindo do primeiro paciente do dia:
”doutor, hoje acordei pra vir aqui, nunca lhe vi, mas tive uma sensação estranha, um aperto,e preciso lhe mandar o recado que senti: não desista doutor, a comunidade precisa de você.”.
E dia desses, no cafezinho, ainda me ralatou o VERSO terno e sincero que ouviu recentemente:
“Doutor, meu querido, fui pra Aparecida e rezei pela saúde do senhor. Também truxe essa imagem aqui para o senhor carregar no carro. A violência está grande...assaltaram a gente outro dia aqui na calçada, antes de abrir a unidade. É que eu penso e me preocupo: se o senhor morrer, quem vai cuidar da gente?”
Sei que ele compreendeu que o desespero das vidas também gera um certo egoísmo obrigatório de "subsistência".
E vi que o doutor João me sorriu "por dentro" simplesmente pelo fato de que o meu amigo já sabe que nada (nem ninguém!) é insubstituível nesse mundo.
Dizem os livros dos poetas e os ditos populares que “alguns apenas o são substituíveis com maior dificuldade”.
Bobagem! Hoje já é tempo de outros tempos...tempos sem referências.
Tempos de aparências que dispensam todas as essências da vida.
Só a poesia é insubstituível.
Permanece pungente a eclodir e a colorir todos os espaços aonde a vida pede passagem.
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Nota da autora: Em sincera homenagem ao dia do médico.