Ramon e o javali

Ramon estava num bosque, em cima de uma árvore, camuflado, imóvel. Ocultava-se em meio às folhas de um galho enorme que o acomodava como uma cadeira de praia – dava até para esticar as pernas –; queria ficar ali o dia todo, só à espreita, observando a mata, ouvindo pássaros e insetos, micos e sapos. Sentia-se parte daquilo tudo, daquelas raízes e seivas, daquele chão, daquele ar em movimento, quente, vivo, selvagem. Não tinha pressa.

A isca era uma mistura de melaço, milho e batata doce, que Ramon tinha colocado no chão, ao pé da árvore. Esperaria o tempo que fosse preciso, passaria a noite inteira ali, em silêncio, firme como uma pedra – era o que ele queria: escuridão de breu; e corujas, morcegos, raposas.

De repente, um som se destacou dos outros, chamando sua atenção: um estalar de folhas secas, seguido de outro, e mais outro. Um bicho grande se aproximava – Ramon sentia-o na pele, nas veias, nas câmaras pulsantes do seu coração, que se acelerava: tum, tum, tum. Era um javali macho, preto, enorme, com manchas marrons na cabeça, ao redor do focinho e no pescoço. Devia ter uns 300 quilos ou mais. Seus caninos se projetavam para fora, grandes e ameaçadores como os de um demônio vindo das entranhas mais profundas do inferno.

O monstro se aproximava lentamente, cauteloso, mas sem titubeios, o focinho erguido, narinas latejantes, farejando, procurando. Parou ao lado da isca. Era alvo fácil. Seria um tiro só. Pá! E fim. Mas Ramon não conseguia. Sua mão tremia. Não posso, disse para si, e tirou o dedo do gatilho. O bicho nem ligava para a isca, continuava parado, atento, sua pelagem dura e comprida eriçada acima do pescoço, como se captasse algo estranho no ar, uma presença, uma energia que o atraía e ameaçava ao mesmo tempo. Olhou para cima e viu Ramon. Tinha sentido seu cheiro, mas o outro, não o do homem civilizado, medroso, prisioneiro de regras e convenções. Sentia cheiro de bicho solto, selvagem. Seus olhares se encontraram – dois animais se olhando, se examinando –, e o javali grunhiu tão forte, e tão de repente, que Ramon quase caiu da árvore.

Não posso matá-lo, pensou Ramon. Não vou te matar, desgraçado, gritou para o animal, que grunhiu de novo, arreganhando os dentes, os olhos em chamas, grudados em Ramon. Reconheceram-se. Ali no bosque Ramon não era gente. Era bicho. Não tinha medo de nada, de ninguém. Era besta selvagem até a superfície da pele, pronto para matar ou morrer.

Normalmente, na cidade, Ramon cultivava esse seu lado animal, mas com cuidado, para não cometer nenhum crime. Cultivava-o, em parte, por causa da indiferença a certas convenções estúpidas da civilização que dele conseguia extrair – uma indiferença que o Ramon civilizado tomava como sua, usando-a no seu contato com os outros, o que aliviava o sofrimento causado pelo excesso de pressão e cobrança da sociedade. Foda-se, ele dizia, e seguia em frente, apaziguado.

Estou aqui pensando em algumas pessoas que eu conheço e nas sacanagens que fizeram comigo, baseadas no que é “certo”, no que “tem que ser”... Quer saber? FODA-SE! FODA-SE! FODA-SE!

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 16/10/2015
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