A MÁQUINA DA TIA ANA
Conheci quando menino de oito ou dez anos a Tia Ana Rosa trabalhando numa máquina movida à mão e cosendo muita roupa da família e dos amigos. Enquanto a Tia Marica fazia a sua renda e mexia com seus bilros, esta outra tia tomava conta da casa e cuidava dos seus animais e costurava algumas peças de roupa de um amigo, ou mesmo da gente de casa. Quando amanhecia o dia ela ajeitava os seus xerimbabos, os seus porcos, as suas ovelhas, os seus carneiros, e cuidava de outros afazeres. E depois ela tomava a velha máquina e fazia alguma roupa de encomenda. Nunca faltavam roupas para a Tia Ana coser. Ela não cobrava quase nada de nenhum freguês e nem dos vizinhos mais pobres. Quando ela ia roçar a nossa velha croa não faltava nenhum vizinho, nem um amigo de Malhadinha que não prestasse uma ajuda a esta tia benéfica. Lembro-me de todos os nossos trabalhadores: Zuca Jerônimo, Raimundo Biana, Raimundo Elias, Seu Boaventura Cacá, o Velho Glicério do Quincó, e muitos outros amigos da Casa das Agostinhos, como eram conhecidas as minhas três tias. A Tia Marica não gostava de trabalho pesado porque o seu maior trabalho era fazer renda e ler. Toda tarde a Tia Ana costurava naquela velha máquina que tanto serviu ao povo da nossa vizinhança e lugares adjacentes. Sempre havia gente visitando a nossa casa e conversando alguma coisa com a Tia Ana Rosa ou a Tia Josefa, a nossa querida beata e conservadora da igreja católica. No quarto da despensa, a Tia Marica punha a sua almofada para fazer a sua renda, tão procurada pela vizinhança e gente mais distante. A máquina da Tia Ana era sempre guardada em cima da mesa do meu avô Agostinho José de Santiago Neto. Quando a Tia Ana ia fazer alguma peça, punha a sua máquina em cima da velha secretária, onde a Tia Marica gostava de ler e escrever as suas cartas literárias e amorosas. Aquela máquina foi para nós um instrumento importante para nós e para os outros também. A Tia Ana era uma celibatária que morreu quase aos noventa anos. Os nossos vizinhos gostavam da simplicidade desta tia meio calada e ao mesmo tempo atraente como ninguém. Todos os dias íamos para a vazante com nosso jumento trigueiro buscar capim, rama de feijão ou rama de batata para os nossos animais famintos. Quando eu encetei a profissão do repente, a Tia Ana, já tinha feito a sua viagem para vida do além túmulo, deixando o nosso lar cada vez mais tétrico. Senti bastante a morte desta tia tão pacata e de um companheirismo sem igual. A nossa casa ficou, daí pra frente, muito mais esquisita e sem o afeto de antes. O silêncio tomou conta do nosso lar, os amigos se afastaram do nosso convívio, e eu me tornei cada vez mais bisonho e taciturno sem a graça do nosso lar, com a ausência desta figura autêntica. A Tia Ana Rosa trazia com ela a sabedoria nata de conquistar as pessoas e respeitar qualquer criatura humana. A máquina da Tia Ana sumiu-se e não mais tivemos notícia deste instrumento de trabalho que tanto ajudou ao povo humilde de minha terra natal, e berço de Agostinho José de Santiago Neto. Tia Ana sempre me fazia todos os mimos que uma criança precisa. As minhas primeiras calças compridas foram feitas por esta tia amorosa e sensível com este menino que ficou órfão com um ano de idade. Esta tia cuidadosa sempre estava no meu pé para que eu não me tornasse um guri rebelde ou um tremendo revoltado. A minha humilde formação partiu do bom exemplo que estas três tias celibatárias me deram. Cinquenta anos atrás esta minha mãe adotiva fez a sua viagem deste mundo cruel. O barulho da máquina da Tia Ana ainda estala no meu ouvido e ficou na lembrança deste poeta sarcástico e muitas vezes um crítico imprescindível. Hoje não vou mais à Malhadinha para não chorar diante dos escombros da velha casa onde tive tantos mimos.
Autor: Antônio Agostinho