Você por perto

Você por perto





Querem você por perto, mas nem tanto. Ninguém toca mais por tocar. E aí, meu camarada, vamos tirar um som? Puxa esse instrumento, por nada, sem motivo algum, sem que haja qualquer intenção além do produto do nosso tocar. Vamos lá, onde está escrito que nossas notas devem valer algo senão o dízimo do encontro?

E quem escreveu isso? Rasga essa porcaria, criatura, a metáfora do rio fluindo vale em qualquer simpósio. Há muito já foi dito que ele corre sozinho. Eu sou você e você sou eu. No encontro somos sósias.

Querem você por perto, mas nada de jogar conversa fora, nada de cutucar como se fosse ameigar, de especular sobre o que de fato – e quando, palpita. Querem apenas para tirar as medidas.

E então, minha grande amiga, quando é que sai aquele passeio, vamos remar na canoa e comentar que apesar da idade mostrar seus ponteiros, e que ponteiros, não sentes aí, vez ou outra, um remoço vindo de dentro? Mesmo acrescido de uma leve agulhada, vez ou outra nos nervos e juntas, não vem o remoço como um sopro da casca que rompeu, ou que poderia ter rompido?

Então vamos tocar “poderíamos”, até conseguirmos “poderemos”. O que é a música, senão o eterno prenúncio das estações novidadeiras?

E aí, galera, camaradas, companheiros, que nesta jornada vieram como pai, filhos, tios, amigos reconhecidos, amantes que foram mães, mães que foram amantes, novos parentes resgatados, sentimentos esquecidos, irmãos do oportunamente, será que existe vida ascendente por trás da camada da sina pragmática, que só aceita encontros musicais aferindo o valor de cada nota pelo câmbio matutino?

Não se joga mais uma pelada pelo cheiro da grama orvalhada, não existem mais quartetos de rabecas em fundos de mercearias, ninguém abre uma caixa de fósforos para jogar um palitinho, poesias impecavelmente bem declamadas só podem rebentar sob signos ou égides menores, menores, sempre menores, nada é maior que a poesia, cadê aqueles três gatos pingados, que se reuniam à tardinha, pra tocar um samba antigo e encontrar novos amigos?

Quem foi que escreveu essa porcaria? Rasga isso aí.
A vida não vem pronta, é teia de passarinho, foi concebida na garagem, pra chegar no andar de cima tem de ter o fluído do carinho, tá achando que a coisa funciona na base do dá cá e não toma lá, pois assim disfunciona a troca, inexiste troca, assim só resta um intercâmbio lazarento, duro, frio, frívolo, sem sal, um cacete dum metrônomo tique taque, cadê aquela gente que agora não pergunta mais aonde vai a estrada?

Querem você por perto, mas tem pedágio. Querem, sem ao certo dizerem se é você mesmo(a), pode ser outra pessoa, querem a carcaça da companhia sem a seiva da essência e então a rima, ah, a rima, será premeditada, terá sido pensada mileumavezes, sob mil precauções será então uma rima precavida e virá de encomenda. Presença de espírito ficou nalgum lugar da vida dos antigos, os antigos que vimos e na hora até nos demos conta, que olhavam as tardes em quase silêncio e proseavam lorotas, muitas lorotas, intercaladas de um sigilo sabedor que a música acontece na pausa imprevista. Ou no imprevisto da pausa.

- Escuta...Esse picadinho que você pediu, é picadinho de cachorro ou é feito na ponta da faca?

Meu amigo, escuta é samba canção, puxa aí esse instrumento, que mal há, uma horinha ou mais, conta pra nós como vai a vida, quais são seus planos, quais foram seus planos, por quem o seu coração realmente balança, pela Ritinha, jura(?), senta aí, chega mais, já cantaram essa marmelada mileumavezes, que mal há em fazer de novo, você acha que foi por dinheiro que o João Cabral de Mello Neto fez versos sobre o futebol do Ademir da Guia? Acorda, meu! Houve um tempo em que emoção/vazão estavam desatadas de um taxímetro tique taque duro, frio, frívolo, lazarento, quanto vou ganhar para arpejar um sol maior?

Querem você por perto pra tirar medidas de coisas que não se medem nem cá, nem lá, não se aferem nos cimos, nos baixos, nos dentros e foras, nem sabem o que estão tentando desesperadamente medir, querem por medida de estratégia, mas no fundo te querem longe, se seus joelhos doem problema seu, não estamos aqui para tirar um som, estamos aqui pela incompreensão estável, estamos ensaiando dia e noite, noite e dia, uma eterna morte disfarçada, inconcussa, que não provoca a vida que bate aí e aqui, quer você durma, acorde ou tussa.

Onde está escrito que entre eu e você não pode existir uma aragem de madrugadas sem fim, estreladas, de manhãs novinhas e de tardinhas caloradas, para você afinar seu instrumento e a gente convocar o que está no meio, bem no meio, do que entre nós palpita?

Está escrito? Então rasga essa porcaria.

Querem você na distância segura da jaula desmazelada, do quintal abandonado, do canto enviesado, somente para que não te percam de vista e nada mais. Sai dessa, criatura, pega teu instrumento, sempre há tempo, assopra aí essa trombeta, as línguas sem fito, sem direção, são carentes do perdão, trombeteia, criatura, e haverá tempo para nós, almas maculadas que ainda acreditam e nada mais, acreditam com todas as forças que não podem ser separadas.

Escreveram o que? Ainda escrevem? Se escreveram pouco importa, joga fora essa papelada, nada viça sem prosa, afina essa coisa aí, vamos lá, ânimo, só tem pedinte na platéia do adeus, se a gente não tira um som as árvores vão cobrar pelos frutos, o trigo vai querer as sementes de volta, o rio vai voltar pra nascente. Já te disse, que importa se não quiserem mais? Sempre existe a porta dos fundos.

E quando não te quiserem mais por perto você cala um instante ou dois. Vai chegar o momento em que a vida será resumida num instante ou dois. Você esvazia a sacola, invoca a alforria, sacode a lezeira, e vai tocar noutra freguesia. Na minha vez, farei o mesmo. Trocamos os turnos pela alegria do reencontro.

Quem sabe a gente se vê, quem sabe lá nos querem por perto. Então fazemos uma dupla, e começamos tudo de novo.


(Imagem: foto do autor)
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 14/10/2015
Reeditado em 08/07/2020
Código do texto: T5414860
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